Das urnas ao governo democrático

O antipetismo e o antibolsonarismo não são suficientes para dignificar uma postulação. É preciso valorizar o plano propositivo, programático, escapando de cálculos de curto prazo, ressentimentos e excesso de protagonismo.

Duas frases recentes revelam bem o que promete a batalha eleitoral em curso. Indicam com clareza alguns dos dilemas e das possibilidades dos candidatos que postulam inserção no polo democrático.

Disse Marina Silva, candidata da Rede: “Eleição não é UFC. Não vou falar mentiras do Ciro, do Alckmin ou do Bolsonaro”.

Já Marconi Perillo, coordenador da campanha de Geraldo Alckmin (PSDB), mirou em outra direção: “Nossa meta tem de ser uma concertação com o centrão, o centro democrático”.

Em cada uma das frases se insinua a mesma preocupação de buscar alianças e aproximações. Marina quer fazer isso sem agressões, em alto nível, ao passo que Perillo sugere algo mais próximo do chão da política, onde se enraíza o bloco fisiológico, hoje associado ao Centrão, essa agregação dos parlamentares que integram o chamado baixo clero do Congresso Nacional.

A abordagem e a comparação devem ser cuidadosas. Frases são frases, muitas ditas de modo improvisado, sob pressão de microfones ávidos por uma boa manchete. Pode ser que Perillo não tenha querido se referir ao bloco fisiológico, e sim ao vasto território da democracia. E Marina, por certo, saberá bater em seus adversários, mesmo que usando luvas de pelica.

Seja como for, as frases mostram parte dos caminhos que serão tentados pelas candidaturas da Rede e do PSDB. E que também estão no radar dos demais candidatos. Sabem todos que sem alianças não há como vencer eleições, nem, sobretudo, como passar das urnas ao governo democrático, ainda que de maneira “conservadora”.

Buscar o centro tornou-se uma obsessão política nacional. A perspectiva dominante entre os que se dedicam a isso é claramente eleitoral: tratam de aparar arestas para conseguir mais tempo de TV, mais palanques e, por extensão, mais chances de votos. Pouco valor se dá à articulação de ideias e propostas, o que deixa a operação sem uma substância precisa.

Tem sido esse o dilema maior dos que elaboraram e endossaram o manifesto Por um polo democrático e reformista. A proposta não avança porque foi enredada pela dinâmica eleitoral e porque não conseguiu, até agora, incorporar a dinâmica governamental, quer dizer, tem olhado mais para as urnas do que para a governança democrática e as políticas de governo que a ela deverão ser associadas. Para complicar, não obteve ressonância nem sequer entre os operadores do próprio centro político, que se fingiram de mortos e permaneceram a cuidar de suas próprias pretensões particulares.

A divisão e o cálculo predatório dos que desejam disputar o centro fazem com que a fragmentação se amplie para dentro de cada grupo ou partido. A “luta interna” se intensifica, com promessas de aliança, torcida ou apoio a um ou outro candidato, tendo em vista a obtenção de maiores vantagens eleitorais, algum ajuste de contas regional ou vagas preferências ideológicas.

O centro é uma obsessão, mas é uma referência abstrata que, na sua formulação mais avançada, não bate no coração dos políticos. Há muitas ideias do que seja um “polo democrático e reformista”, de quem deve integrá-lo e de quais são seus compromissos além das urnas. Muitos querem tão somente criar uma opção para evitar os “extremos”, que identificam com as candidaturas de Bolsonaro, de Ciro e do PT. Outros se batem para colar a democracia ao ideário liberal. A maioria dos presidenciáveis está atirando para todos os lados, tentando capturar ideológicos e fisiológicos. Pensam em votos. São poucos os que consideram ser a unidade democrática uma plataforma para o futuro, a qual deverá incorporar energias e propostas de diferentes correntes e partidos.

O antipetismo e o antibolsonarismo não são suficientes para dar dignidade ao que quer que seja. É preciso valorizar o plano propositivo, programático, coisa que muitos operadores centristas não conseguem fazer, prisioneiros que são de cálculos de curto prazo, ressentimentos e excesso de protagonismo.

Marina Silva tem tentado enfrentar o dilema à sua maneira. Optou, há tempo, pela tática da discrição e do “silêncio ativo”, alimentado por palavras pontuais, críticas certeiras e muitas conversas de bastidores. Não abre mão desse estilo, que parece constitutivo de sua própria personalidade. Boa parte de sua força e de sua fraqueza vem daí: ela pouco se expõe e trava sua visibilidade, mas, ao mesmo tempo, resguarda-se para tratar do fundamental, ou seja, da dimensão programática. A marca da renovação pulsa forte na campanha. Tem funcionado, graças ao recall e à biografia épica da candidata.

Sua campanha, porém, não pode dispensar alianças e coalizões. Ela age de modo seletivo. Não quer “qualquer acordo”, desses que reponham a polarização e as práticas tradicionais. Tem focalizado os grupos de perfil cívico e mais recentemente o PPS. Mas precisa considerar que o baú de aliados é pequeno e está sendo disputado por todos, centímetro a centímetro. Se perder tempo, ficará isolada. É sintomático que tenha vindo do senador Randolfe Rodrigues, da Rede, o esclarecimento de que o ideal para Marina é que seu companheiro de chapa seja “ou alguém do meio empresarial ou alguém com o perfil político do Roberto Freire, que talvez seja a pessoa do mundo político que reúna as melhores condições para ser vice de Marina”.

Com esse movimento, Marina poderá tornar viável outra versão do “polo democrático”, mais aberta aos temas sociais, à educação, ao meio ambiente, ao combate à corrupção e à renovação da política.

Se der esse passo, terá como requalificar os propósitos do manifesto lançado no início do mês em Brasília, que, aliás, será relançado no próximo dia 28, em São Paulo. Nesta segunda oportunidade, poderá frutificar de fato uma iniciativa generosa que se deixou aprisionar pelos interesses eleitorais e que precisa deles se libertar para produzir todos os efeitos renovadores e unitários a que se propõe.


Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/06/2018, p. A2.

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