Sociedades são arranjos complexos e dinâmicos. Têm contradições, diferenças, forças internas. Movem-se em função delas. São, como diz uma máxima, o “mundos dos homens” e mulheres.
Sociedades conhecem altos e baixos, crises, fases de bem-estar e felicidade e fases de fracasso e incerteza, nas quais o futuro parece solto no ar. Há períodos em que o arranjo desanda de tal jeito que se generaliza a sensação de que a tarefa de aprumá-lo não poderá ser cumprida. Esses são períodos de confusão e turbulência, de desânimo cívico, indignação e revolta.
É onde está hoje o Brasil. Numa estrada repleta de curvas, depois das quais não se antevê nenhum belvedere.
A Lava Jato encurralou a corrupção instalada no Estado. Tem prendido e condenado políticos, empresários e intermediários poderosos, fato que acende muitas esperanças. Mas há ao mesmo tempo judicialização excessiva e a elite togada não se mostra qualificada para dar conta do recado. O assassinato da vereadora Marielle Franco foi um atentado contra a democracia e contra os direitos humanos. Mas causou uma indignação social tão grande que pode ter inaugurado uma nova situação. Não há escalada autoritária no País, em que pese a violência se reproduzir.
O problema é o que se vê e sente. Os cidadãos só conseguem vislumbrar escombros, que recobrem conquistas políticas e sociais duramente alcançadas nos anos mais “heroicos”, em que a maioria caminhava numa mesma direção e acreditava nas mesmas coisas.
Olham para o Estado, esse guardião da comunidade e fiador do contrato social, e ficam ainda mais ressabiados e inseguros. O Leviatã simplesmente parece em coma. Da Presidência da República ao Legislativo, passando pelo Judiciário, sucede-se o mesmo quadro: cabeças batendo entre si, mediocridade generalizada, reações adaptativas e defensivas, uma recorrente demonstração de que ninguém sabe bem que direção tomar.
A crise do Supremo Tribunal Federal (STF) é o indicador mais recente do quanto a comunidade política nacional está em condição de sofrimento. Não é preciso analisar as minúcias do problema para ver a gravidade da situação. Afinal, estão ali sentadas 11 sumidades jurídicas, intérpretes autorizados da Constituição. Esse panteão de figuras consideradas superiores, porém, não consegue entender-se. Dissonâncias ultrapassam o razoável, o individual sobrepõe-se ao institucional, as decisões são erráticas, a tal ponto que a sociedade fica a se perguntar se os magistrados não seriam somente personagens de um drama que não conseguem decifrar. Em vez de paz e consenso, o STF produz atrito, fogo e fumaça. Basta a ameaça a um interesse poderoso para que a Corte trema e passe a flertar com o casuísmo, ameaçando modificar jurisprudências e entendimentos procedimentais ainda frescos de tinta, como é o caso da prisão em segunda instância. A oscilação de alguns ministros deixa transparecer que alguma força externa pesa nas avaliações.
Os cidadãos afastam-se, assim, dos juízes. Assistem a bate-bocas pesadíssimos, cheios de ofensas verbais e agressões. O ministro Luís Roberto Barroso disse a Gilmar Mendes: “Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia. Vossa excelência é uma desonra para todos nós, um temperamento agressivo, grosseiro, rude. Sozinho desmoraliza o tribunal”. E se Barroso estiver certo?
Agindo nos bastidores, ministros forçaram a presidente da Corte, Cármen Lúcia, a levar a plenário o julgamento de um habeas corpus (HC) preventivo para livrar Lula da prisão após decisão em segunda instância. Na quinta-feira, 22, o Tribunal decidiu aceitar o HC, mas não conseguiu apreciar seu mérito, transferindo a decisão para 4 de abril e aprovando uma liminar que suspende uma eventual prisão de Lula. Deixou tudo em suspenso, criando mais desconfiança e sensação de parcialidade.
Assustados, os cidadãos procuram os partidos, que deveriam dedicar-se à valorização da política, mas apenas conseguem encontrar entes desnervados, que só fazem lustrar os próprios sapatos. Pensam em recorrer aos políticos e se deparam com pessoas que preferem semear ventos para colher tempestades, na vã ilusão de que depois delas a bonança prevalecerá.
Chegam, então, à sociedade civil, esse setor que carreia tantas esperanças, mas, com o tempo, foi sendo estressada pelos particularismos – partidários, ideológicos, identitários – e pela guerra de “narrativas”. Impulsionada por redes sociais destemperadas, não consegue articular-se e tem pouca incidência consistente na vida dos cidadãos, da cultura, da política, do País.
Atingido esse ponto, os cidadãos perguntam: o que fazer?
Diz-se que é nos piores momentos que aparecem as melhores ideias. Foi assim durante os anos da ditadura, quando, por volta de 1975, ao abrir-se a “transição lenta, gradual e segura”, as nuvens se carregaram a ponto de ameaçar o País com uma tormenta bíblica. Foi assim na luta para conter a inflação, introduzir maior racionalidade na administração pública e adotar programas de transferência de renda e assistência social, durante os governos de FHC e Lula. Nesses momentos, o País como que se re-uniu e avançou.
Não dá para dizer que o mesmo acontecerá hoje. Faltam-nos alguns ingredientes básicos – lideranças, ideias, um pacto de convivência, unidade democrática. E não há aquela fagulha mágica que incendeia mentes e corações.
É preciso, porém, resistir. Buscar um eixo, viver a hora da verdade. O coma do Leviatã não pode calcificar as esperanças. Com boa vontade e empenho, os democratas – liberais, de centro, socialistas, de esquerda – têm como atuar de forma “anticíclica” e promover uma articulação que pavimente outro caminho. As instituições estão aí, prontas para ser recuperadas. E a política, acima de tudo, é uma atividade vocacionada para inventar saídas. Mesmo quando tudo parece conspirar contra. [Publicado em O Estado de S.Paulo, 24 Março 2018 | p. A2]