
As redes sociais estão em estado de natureza?
Um bom título não garante a qualidade nem os atributos substantivos de um livro. Assim como uma capa caprichada, pode até iludir o leitor, atrai-lo para uma leitura da qual logo desistirá. Quando, porém, o conteúdo cumpre o que promete, o título ganha envergadura, atrai e seduz.
É o que acontece com o livro de José Antonio G. de Pinho, professor titular aposentado da UFBA e um ativo pesquisador da gestão pública e dos problemas brasileiros. Recentemente publicado, As redes sociais como Estado de Natureza: ódio, violência e fake news no Brasil (Salvador, Editora UFBA, 2025) busca em Hobbes, Locke e Rousseau referências teóricas para mergulhar nas redes sociais, brasileiras em particular. Os três grandes filósofos – autores de diferentes, mas complementares, visões do estado de natureza – são tomados como exemplares de uma reflexão sobre a necessidade de parâmetros para que se tenha formas de vida minimamente harmoniosas. Por caminhos distintos, eles sugerem que toda sociedade necessita de um Estado para sobreviver e proliferar.
A ideia é conhecida, sobretudo na versão hobbesiana: no estado de natureza, o homem é o lobo do homem, buscará sempre mais poder e não estará capacitado para construir uma vida comum satisfatória. Necessita de ordem, disciplina, coerção, instituições que o eduquem para a vida civilizada. Para que lei impere, todos teriam de ceder na luta por seus interesses e pulsões.
Em certa medida, Hobbes foi “corrigido” por Locke, que atenuou o componente da violência e da coerção, enfatizando o mesmo valor da lei e o respeito ao direito de propriedade como freios suficientes. Rousseau foi ainda mais longe, ao defender a liberdade plena do indivíduo-cidadão (uma espécie de “bom selvagem”) como condição para impedir os excessos do poder estatal.
O livro de Pinho explora exaustivamente as versões desses filósofos. Mas seu interesse principal não é refazer o extenso debate filosófico sobre eles, mas sim tomá-los como base para sugerir um modo de compreender criticamente as redes sociais dos dias atuais.
Entender as redes como “estado de natureza” significa vê-las como um ambiente em que faltam regras de convivência, as agressões prevalecem e não há diálogos produtivos. Isso quer dizer, antes de tudo, que se desperdiça o potencial interativo das redes, ao menos em parte. Não é que elas não sirvam à inteligência, à colaboração e à comunicação entre os humanos. É que elas estão acossadas por pessoas, algoritmos e robôs que se dedicam a utilizá-las para fomentar ódio, desinformação e cancelamentos estigmatizantes. As Big Techs passaram a controlá-las, ainda que sem conseguir vedar todos os espaços por onde se pode respirar. Trata-se de uma liberdade contida, refreada, limitada pelo próprio jogo das redes. São espaços que não se mostram suficientes para controlar as redes, donde a permanente defesa de uma regulação, ou seja, como ocorre no Brasil, de um Marco Civil que coíba os excessos que nelas são praticados.
Como vivemos em plena era digital e as redes são onipresentes, a compreensão do que os novos ambientes trazem para a vida coletiva é um desafio. Porque as redes (assim como a internet de massas) nasceram para fomentar a cooperação, mediante a instituição de uma dinâmica que, por si mesma, pautaria o uso inteligente das ferramentas digitais. Nasceram, por assim dizer, em uma condição na qual se apostava na autocriação dos humanos, que seriam capazes de manter o foco na cooperação e no diálogo. A evolução das coisas, porém, levaram as redes a ingressar em outra condição: o estado de natureza digital, que passa a coexistir com uma espécie de “estado civil digital”, corrompendo-o sempre que possível.
Nesse estado de natureza digital, não há regras válidas para todos, o que libera os usuários para todo tipo de condutas não-cooperativas, fechadas ao diálogo e à comunicação inteligente. A rápida expansão da inteligência artificial, das máquinas inteligentes, impulsiona a vida social para um patamar desconhecido. O digital reverbera em tudo, e tem extraordinário impacto na política e na democracia.
Talvez tenha havido um momento em que cedemos demais à tecnologia, sem avaliar seus riscos. As redes sociais enveredaram pelos mais diversos cantos da vida e não há nem como evitá-las, nem como desprezar seu potencial positivo. Funcionando como estados de natureza, elas são motores de conflitos, polarizações e batalhas inglórias. O problema, no entanto, é que não poderemos fazer algo diferente se apostarmos na construção de “estados civis”, baseados na força e na coerção, no populismo autoritário ou na restrição das liberdades.
Difícil encontrar a saída, especialmente se considerarmos que a captura das redes pelos que se beneficiam de formas variadas de estado de natureza faz-se acompanhar de um rebaixando generalizado da educação cívica das populações, um enfraquecimento da ética pública e uma desconstrução das organizações políticas que poderiam transportar os cidadãos para uma nova dimensão estatal.