Cem anos depois que os bolcheviques tomaram de assalto o Palácio de Inverno em Petrogrado, onde se refugiara o governo provisório herdeiro do czarismo, a Revolução Russa continua a dividir opiniões e a se reproduzir como um dos fatos mais importantes da História moderna.
O que parecia ser um putsch tradicional, destinado a ter vida curta, estendeu-se no tempo, converteu-se em um Estado poderoso, deu origem a uma nova sociedade e a uma nova ideia de vida coletiva. Incendiaram-se as ideias e os parâmetros com que se pensava o futuro. Os Partidos Comunistas ganharam fôlego no imaginário social como construtores de um novo mundo e só não avançaram de modo mais célere na Europa porque a Rússia revolucionária mergulhou na guerra civil, foi levada a endurecer o regime político progressivamente após a morte de Lênin em 1924 e porque o mundo entre as duas guerras era hostil a planos generosos de reforma. Havia o nazismo e o fascismo em ascensão, a crise de 1929 espalhou seus efeitos com rapidez e a democracia representativa foi forçada a se conter. Mesmo assim, os comunistas se converteram em políticos de respeito, capazes não só de organizar um país como de lutar pelos interesses das maiorias e dos trabalhadores, as mesmas massas que emergiriam com força na política sob impulso da Revolução de 1917, ainda que não somente dela.
O século XX, a rigor, começou ali, como bem lembrou o historiador inglês Eric Hobsbawm. Em sua evolução, o comunismo e a reforma social ganharam corpo como utopias plausíveis, capazes de fornecer diretrizes para a atividade política e de fixar o anticapitalismo como meta possível.
Foram muitas as versões do que deveria ser essa macro-transformação. Os próprios revolucionários nem sempre se entenderam a respeito, dividindo-se sobre o peso que seria preciso dar ao Estado, aos partidos, à democracia, às liberdades, ao indivíduo. Foram divisões contundentes, que com o tempo minaram as forças comunistas e despejaram desentendimento em todas as esquerdas pelo mundo afora.
Que sacrifícios teriam de ser feitos para que um novo mundo pudesse emergir e se consolidar? Que estratégias deveriam ser seguidas nos países “orientais” como a Rússia – marcada por um agrarismo renitente e por um autoritarismo secular que forjara todo um leque de hábitos e procedimentos –, e nos países “ocidentais” do centro-oeste europeu, já industrializados e com sociedades civis mais complexas e estruturadas? Qual o ritmo da revolução?
A utopia modelada por Marx e Engels no século XIX cairia como uma luva ao se abrir o século XX. O capitalismo avançara em escala global, os trabalhadores industriais se reproduziam e queriam sair das fábricas para as ruas, alcançar o sistema político e o Estado, obter ganhos e conquistas que haviam amadurecido ao longo de décadas de trabalho infame e lutas de emancipação. Anunciava-se claramente que o novo século seria urbano e industrial e que, nele, espaços expressivos teriam de ser concedidos às massas e o próprio capitalismo precisaria ser “reinventado” para escapar do cerco a que estava sendo submetido. Lênin percebeu isso com clareza e sua liderança política e intelectual foi decisiva para impulsionar o movimento revolucionário.
A Revolução Russa forneceu parte do arsenal com que as lutas políticas passaram a ser travadas. A outra parte veio da socialdemocracia, empenhada em projetar reformas progressivas que aos poucos abriram brechas na couraça capitalista. O próprio nazi-fascismo exploraria o anticapitalismo, mas seria tragado pela estupidez e pelo irracionalismo violento que o caracterizavam.
A Segunda Grande Guerra fecharia uma etapa e dela os comunistas sairiam valorizados como combatentes da liberdade e da justiça social. Em alguns países da Europa passariam a integrar os governos de reconstrução nacional, nos quais consolidariam sua disposição de atuar em alianças e de modo unitário. Foi assim na Itália, por exemplo, país em que o PCI cresceu expressivamente. Em outros países, a socialdemocracia redesenharia as políticas de Estado e também se afirmaria como força política.
Mas a Revolução Russa seguiria um caminho explosivo, condicionado pela cultura política do país, pelo vazio de liderança que se seguiu à morte de Lênin, pelas lutas internas do partido comunista e pelos estragos da Primeira e depois da Segunda Guerra. A partir dos Anos Trinta, Stálin irá se impor, reduzindo o partido ao Estado e promovendo ajustes de contas que se somariam a um autoritarismo que só fazia crescer e se disseminar por toda a sociedade. A União Soviética, ao mesmo tempo, se convertia em potência, organizava suas indústrias e seus arsenais, ameaçava disputar o centro da ordem internacional. Com o fim da Guerra, o desfecho foi inevitável. A URSS se tornou o alter perfeito dos EUA e a “Guerra Fria” tomou conta do mundo.
A utopia comunista foi obrigada, a partir daí, a lidar com o problema de manter distância ou legitimar passivamente o que ocorria na União Soviética. O Relatório Krushev de 1956, apresentado para denunciar os crimes e os erros de Stálin, santificado inadequadamente, tentou ser um balão de oxigênio para animar os comunistas. No lugar de Stálin “guia genial dos povos”, emergia o ditador sanguinário. Pegou a todos de surpresa. Muitos não acreditaram, passaram mal, viram em Krushev um traidor. O Relatório só seria impresso décadas depois. O que circulou na época foram versões de um discurso congressual, fazendo com que crescesse a confusão.
Os cúmplices de Stálin, porém, eram muitos. Convictos ou ingênuos, bem-intencionados ou simples reprodutores das ordens vindas de cima, conseguiram frear o que poderia ter sido uma renovação. O stalinismo continuou vivo, ainda que menos legitimado. Converteu-se em sistema, que pouco a pouco engessaria a URSS e faria crescer a insatisfação social. Somente nos anos 1980 é que surgiria Mikhail Gorbachev, com sua Glasnot e sua Perestroika, para pregar a necessidade da transparência, da democracia e da reforma econômica. Foi tarde demais. Os satélites soviéticos explodiram e a URSS ruiu como um castelo de areia.
A utopia comunista, que já vinha perdendo vigor, registrou o golpe. A “vida líquida” do capitalismo globalizado completou o quadro, impondo um ajuste forte na ideia mesma de esquerda e de partido político, algo difícil de ser feito. Com isso, o que poderia haver de legado cultural no comunismo histórico ficou rarefeito.
A “utopia” da Grã-Rússia, porém, se manteve. Foi de certa maneira reativada por Vladimir Putin, fiel caudatário do autoritarismo russo. A Rússia de hoje está distante da Rússia de 1917, mas Putin está próximo de Stálin. Seu governo nem sequer comemora os 100 anos da Revolução. Recusa-se até mesmo a refletir sobre o legado de 1917, que foi controvertido e sinuoso, mas sem o qual não existiria o século XX tal como o conhecemos.
A Revolução Russa é parte da História dos nossos tempos. Ignorá-la ou desprezá-la em nome de uma polarização com a esquerda e o comunismo é expressão não só de intolerância, mas de regressismo intelectual.
Se o século XX começou em 1917, é lícito afirmar que terminou em 1992?
trata-se de uma metáfora de Hobsbawm. Começou em 1917, terminou em 1989. A era dos extremos.
Rigorosamente, o historiador data o início do Breve Século XX em 1914, data do início da Primeira Guerra. Mas a Revolução Bolchevique é parte da crise mundial que é deflagrada pelo conflito.
É verdade. O ponto de partida é o ciclo de transformações e conflitos (nacionais e internacionais) no qual a revolução estava inscrita. Obrigado pela precisão historiográfica, que às vezes escapa.