O que faz um governo eleito governar?
A resposta canônica é conhecida, mas nem sempre é praticada. Consta de três pontas.
Em primeiro lugar, apoio social, expresso na manifestação eleitoral dos cidadãos mas reproduzido ao longo da gestão. Votos que elegem nem sempre são votos que sustentam os atos governamentais ou coonestam as atitudes do governante. São colhidos em muitos cestos e orientados por variadas escolhas, até mesmo a de impedir a vitória de alguém. Precisam ser organizados enquanto se governa. É a batalha da legitimidade. A tentação de permanecer em campanha depois da eleição demonstra o medo que o eleito tem de perder os apoios manifestados nas urnas, muito mais do que a pretensão de conquistar novos apoios. Sem novas adesões, porém, restringem-se suas condições de futuro.
Em segundo lugar, uma boa equipe de governo, um bom ministério, com adequada estrutura de pessoal, técnica e gerencial, sem o que o governo não terá como formular propostas, levá-las à execução, controlá-las, avaliar o que consegue realizar. Em sociedades complexas, com Estados avantajados e repletos de atribuições, a equipe de governo responde por boa parte do sucesso. Ministros pouco qualificados, estranhos às suas pastas, guindados ao primeiro plano com pretensões eleitorais ou em busca de prestígio são tão perniciosos quanto ministros que se prestam a funcionar como meras extensões do chefe (e de seu partido, se for o caso) ou como lobistas de segmentos da sociedade.
Em terceiro lugar, capacidade de articulação política e disposição para construir consensos parlamentares, algo decisivo em qualquer situação. Num regime presidencial como o brasileiro, por exemplo, por suas características, isso implica manter uma agenda aberta à interação com dezenas de partidos e grupos de parlamentares, dialogar com governadores e corporações, movimentar-se para ouvir demandas, auscultar os humores políticos, conceder entrevistas. É o trabalho principal do chefe, que só em pequena dose pode ser delegado a auxiliares, posto que a parte nobre, mais pesada, dependerá sempre da palavra final e da modelagem do vértice superior.
As três pontas acima mencionadas sofrem o efeito do que se poderia chamar de “carisma” do chefe do governo. Quanto mais brilho próprio e trajetória heroica tiver um presidente, por exemplo, mais facilidade terá de municiar a articulação política ou converter apoios eleitorais em apoio político. Sua capacidade de comunicação e sua clareza de visão estratégica são fundamentais para dar coesão e rumo à equipe de governo. Presidentes ou chefes sem dotes políticos costumam infernizar a vida de seus assessores e contribuem demais para o desgaste da imagem governamental.
Considerando a situação brasileira, pode-se dizer que o governo Bolsonaro conta somente com a primeira dessas pontas. E mesmo aí não de forma perfeita, tanto que “continua em campanha”, sem conseguir ampliar sua base social e conquistar novas adesões. Seus índices de popularidade não estão subindo, mas declinando, e o governo, para tentar sair do isolamento, chega mesmo a impulsionar uma mobilização de rua para manifestar apoio social, o que pode piorar ainda mais a situação.
Sua promessa inicial era compor uma equipe avessa ao intercâmbio parlamentar e integrada por técnicos qualificados. O ministério formado, porém, não corresponde a isso. Flutua ao sabor de jatos de personalismo, de fanatismo hidrófobo, de subserviência à camisa-de-força ideológica e nefasta de provocadores estranhos à vida nacional. Alguns ministros funcionam, mas a maioria vive a bater cabeça e a tartamudear. Os filhos do presidente se intrometem em tudo, distribuindo cotoveladas em ministros, aliados e parlamentares. A ideologia, processada em dimensão obscurantista e paranoica, intoxica o discurso do Executivo, atritando os demais poderes e abrindo fendas profundas no que deveria ser a coesão governamental. Como consequência, impossibilita a ampliação dos apoios, a negociação das propostas no Congresso Nacional, a criação de um clima “positivo” que abra espaço para a atuação “construtiva” do governo.
Ainda que haja indícios de que falta inteligência política ao governo, não se trata de um governo irracional. Há nele uma dose de cálculo, um estilo de atuação, uma opção por certas armas de combate no lugar de outras. É um governo que faz escolhas, sendo que a principal delas é a da hostilidade como procedimento, método com o qual cria crises e inimigos para justificar sua falta de ação e, ao mesmo tempo, agregar sua base mais fanatizada. A “velha política” e a oposição de esquerda seriam, para ele, a expressão de um sistema que não permitiria que se governasse.
A hostilidade como procedimento tem mantido o governo em campanha, mas não o faz governar. Cria fumaça e ruído, produz problemas sucessivos e nenhuma solução, destrói sem construir, como se seu programa fosse mais negativo do que positivo. Vai assim demolindo pontes, envenenando áreas, erodindo a sociabilidade, criando desertos por onde passa. Oferece em troca tão-somente a promessa redentora do “mito”, a cavalo de um Deus confuso e vingativo.
O resultado é que o componente propriamente bolsonarista do governo continua do mesmo tamanho, se não menor. Permanece heterogêneo e sem coesão, sem estrutura organizacional, dependente de bots e ativistas digitais, falando consigo próprio. Mantém-se, na verdade, como uma seita, que tem seus ritos e símbolos, seus devotos, sua máquina de descobrir traidores e inimigos a cada dia.
No caso brasileiro, o horror e o espanto crescem na opinião pública. O governo desfila sua indigência e nada entrega, a crise econômica se aprofunda, a ético-política se prolonga. O presidente não percebe que sua atuação corrói a República, ao esvaziar o principal mecanismo que a dignifica, a atividade política. Ou estaria ele querendo precisamente isso?
Publicado em O Estado de S. Paulo, versão impressa, 25/05/2019, p. A2.