Qualquer pessoa atenta sabe que um ringue em que está Donald Trump é uma terra sem lei, uma selva dominada por feras agressivas, que não obedecem a nenhuma regra a não ser as da própria sobrevivência e do próprio domínio.
Trump é daqueles pugilistas que enfia o dedo nos olhos do adversário, bate onde não pode, desrespeita o juiz, parte para cima depois que o gongo soou. Expressa um tipo de político: narcisista, autoritário, rude, mal-educado. É parte de uma escola que se espalhou pelo mundo nos últimos anos e emporcalha a democracia.
Joe Biden sabia disso e tentou permanecer firme, quem sabe para vencer o adversário pelo cansaço. Não conseguiu, ou só conseguiu em parte, por exemplo quando mencionou o New Green Deal.
Em um debate, a tática de políticos como Trump é manjada: melar o debate, impedir o oponente de argumentar, criar um ambiente de caos. Sua meta é afastar, não juntar. Confundir, não esclarecer. Posar de perseguido por todas as potências do mundo, vítima de conspirações da esquerda, dos globalistas e dos ambientalistas, que ele mistura numa sopa indigesta. Tudo para se apresentar como defensor “da lei e da ordem”, afirmada contra o “sistema”. Nenhuma sinceridade, a arrogância saindo por todos os poros.
O plano é estigmatizar e colar no adversário etiquetas que possam ser identificadas pelos eleitores cativos. Para Trump, por exemplo, Biden não passaria de um “boneco da esquerda radical”, um político “fraco” e sem liderança. Quer com isso reforçar o medo, o ressentimento e a insegurança daqueles que se sentem prejudicados ou frustrados pelas mudanças da vida.
Biden, em boa medida, é uma pedra no sapato de Trump. Branco, moderado, católico, de uma família de trabalhadores da Pensilvânia, tem larga experiência política e uma história pessoal marcada por dramas e tragédias. Difícil que possa assustar o eleitor norte-americano.
É o que explica a insistência de Trump de pintá-lo como “dependente”.
Entre tapas, insultos e mentiras
O debate presidencial Trump-Biden, ontem à noite, foi muito ruim. Não apresentou nada de substantivo e trouxe pouquíssimos elementos programáticos. Um cenário patético, com dois malucos se agredindo abertamente. Pode-se dizer que Biden ficou na defensiva, acuado com a agressividade do oponente. Desperdiçou chances preciosas de demolir Trump, que lhe abriu flancos diversas vezes.
A favor de Biden, porém, pode-se dizer que mostrou decência e buscou envergar as vestes do estadista, tentando falar com o povo, manter a serenidade, denunciar a arrogância. Buscou o eleitor médio, o cidadão comum.
Sua postura fez alguma diferença num debate que, a rigor, não houve. Ficaram a ressoar no palco seus apartes chamando Trump de palhaço, idiota, mentiroso e racista. Uma hora e meia em que os espectadores assistiram a um festival de insultos e mentiras. Um retrato melancólico da situação a que chegaram a política e a democracia.
Se Biden não ganhou muita coisa, também não deve ter perdido. Enfrentou com bravura (e timidez) um adversário que Bernie Sanders, logo após o debate, classificou com o “mais perigoso presidente da história americana”. E Trump sentiu.
Mas há quem queira mais.
Políticos da escola de Trump não estão só corroendo a democracia. Estão confundindo os democratas, levando-os a abandonar o diálogo e a argumentação reflexiva em troca de uma agressividade com sinal oposto. A ideia de que é preciso “partir prá cima”, bater sem dó nem pena porque seria essa a linguagem do convencimento, passou a ser defendida por muita gente qualificada.
Na base disso está uma perda de importância das ideias e das ideologias, no lugar das quais entraram em cena as fake news, a pós-verdade, o ódio, a raiva, a polarização visceral em torno de crenças ingênuas. Cada turma carrega suas verdades, que não se associam a visões da realidade ou a convicções doutrinárias, e sim com formulações empacotadas para “causar”. É outra modalidade de política, mais mesquinha, mais vazia, sem grandeza, com falas agressivas modeladas para impressionar.
Agressividade não significa firmeza de princípios e ideias. Pode ser indispensável que em alguns momentos alguém bata na mesa e levante a voz, mas o fator diferencial da postura democrática continua a não ser o adjetivo, mas o substantivo.
Li em algum lugar que a melhor tática contra adversários como Trump seriam a ironia e o sarcasmo, elementos que poderiam levá-los aos destempero. Pode ser mesmo, até porque gritar, bater e agredir pouco incomodará oponentes que sabem se blindar e não têm qualquer freio moral que os impeça de elevar ainda mais o tom e a baixaria. O único modo de derrotar adversários como Trump ou Bolsonaro passa pela argumentação contundente, serena, firme e substantiva.
Joe Biden, ontem, ganhou e perdeu. Mostrou o ridículo de Trump, com sua orgia discursiva, mas não conseguiu escapar do manicômio instalado no palco de Cleveland. No final, como disseram alguns analistas, quem perdeu mesmo foi o eleitor norte-americano. Como disse Bernie Sanders, o debate pode ter aprofundado a perda de confiança dos eleitores na política e ideia de rule-of-law.
Mesmo assim, foi fácil concluir que há um abismo político, ético e moral separando os dois candidatos. Ele tenderá a se reproduzir nos dois próximos debates. Tudo parece indicar uma situação de jogo jogado, com o eleitorado já tendo feito suas escolhas.