Não há como negar coerência e persistência a Antônio Risério. O antropólogo baiano é um de nossos autores mais criativos, com erudição e capacidade reflexiva com que construiu, de vários anos para cá, uma obra sólida e claramente demarcada. Seus livros tratam da sociedade brasileira, da sua riqueza étnica, do caráter mestiço de sua população, da história dos negros escravizados e de seu legado para a nação.
Tratam também, e com ênfase recorrente, dos debates sobre identidade, em particular dos negros e das mulheres. Risério é um polemista brilhante, daqueles que não só gostam de um bom debate como não recuam diante de críticas, mesmo quando são maldosas. Já escreveu bastante sobre os erros históricos, sobre a importação apressada das teorias norte-americanas e “decoloniais” por parte dos que trabalham em prol do reconhecimento das identidades. Tem sido alvo de muitos ataques, ativados contra aspectos pontuais de seus livros, artigos e entrevistas. Não retrocedeu. Ao contrário, parece a cada dia ficar mais entusiasmado com os debates que provoca.
Seu livro mais recente expressa bem a personalidade política e intelectual de Risério. A começar do título: Pelé, o negão planetário (Rio de Janeiro, Topbooks, 2025, 463 págs.). Provocativo na medida, seria possível dizer. Dar a Edson Arantes do Nascimento, o icônico jogador de futebol, o epiteto de “negão planetário”, é um ato voltado para sustentar uma tese: sem Pelé – um negro assumido e assim visto e tratado por todos – o futebol não seria o que é hoje no Brasil. E, talvez, não tivesse se internacionalizado do jeito que foi.
O “crioulo”, como Pelé também era chamado, abriu fronteiras. No fim da carreira, foi jogar nos EUA quando os norte-americanos somente conheciam o football (variante do rugby), o basquete e o beisebol. Circulou pelo mundo, recebeu homenagens em diversos países, tornou-se uma lenda do esporte. Alguém a ser idolatrado, copiado, invejado. Imbatível diante dos mais parrudos zagueiros. Com uma inteligência criativa acima da média, compreendia o jogo como poucos. Infernizava as defesas.
Nascido no interior de Minas Gerais em 1940, Pelé acompanhou a família na mudança para Bauru, no interior de São Paulo. Lá o garoto cresceu e ganhou intimidade com a bola, até ir para o Santos F.C, onde se consagraria. Em 1958, aos 17 anos, ganhou a glória com o título mundial da seleção brasileira na Suécia. Foi o jogador mais jovem a participar, marcar gols e vencer uma final de Copa do Mundo.
Risério segue a trajetória de Pelé, fornecendo aos leitores uma verdadeira viagem pela história do futebol. Não se trata de uma biografia de Pelé, mas de uma reflexão em torno dele. Risério dialoga com cronistas esportivos, pesquisadores acadêmicos, jogadores e técnicos. Elabora uma visão panorâmica do esporte preferido dos brasileiros, sempre destacando a contribuição dos negros e o caráter abertamente mestiço da maioria dos atletas. Disfarces à parte.
O panorama fornecido por Risério também mostra o quanto houve (e há, ainda hoje) de discriminação e preconceito nos ambientes futebolísticos. No início, acreditava-se que, por ter sido introduzido no Brasil por um jovem Charles Miller, que se encantou pelo esporte quando estudava na Inglaterra, o futebol seria um esporte de brancos elitizados. Para ser praticado nas escolas, como exercício físico. Os negros seriam “fracos”, despreparados para assimilar as regras do jogo.
Os moleques negros e mestiços, no entanto, foram comendo pelas beiradas, improvisando jogos nos campinhos e terrenos baldios, onde mostravam uma alegria nas pernas que impressionava os outros jogadores, que logo começaram a convidá-los para as partidas. Foi um estopim. Já nos anos 1920, o futebol começou a se popularizar. De baixo para cima. Deixou de ser um esporte de elite. Os moleques reinventaram o futebol “a partir da realidade imperativa de seus corpos flexíveis, de cintura solta e bem desenhada”. Daí nasceu a escola brasileira de futebol. Que enfrentou arsenais racistas até se consolidar.
A “democracia racial” acabou por se impor no campo de jogo, mas não sem luta, suor e lágrimas. Ainda hoje, o campo não está livre de rusgas e estigmas racistas.
Risério destrincha Pelé. Vai da indagação sobre a origem do apelido (que associa ao iorubá) ao modo de jogar, à malícia em campo, ao talento incomum. Avalia o choque entre as personalidades de Edson Arantes e Pelé: “Edson é a mesmice cotidiana, Pelé é o relampadear dos deuses. E isto se estendendo à dimensão sexual da existência, ao reino das labaredas eróticas do desejo”. Vai tocando a bola em meio a digressões teóricas saborosas e várias flechas contra os “identitaristas” brasileiros.
Risério passeia pelas relações entre futebol e sexo, futebol e política, futebol e racismo. Registra com razão a incapacidade das esquerdas de valorizar e compreender os ídolos populares do país. A viagem que nos propicia está repleta de paradas reflexivas.
Hoje, o futebol se miscigenou em todos os lugares onde é praticado. Ficou categoricamente mundializado. E se mercantilizou, gerando uma cultura em que princípios éticos e escrúpulos “parecem bens de produção e consumo impressionantemente escassos”, como escreveu Risério. Toda uma geração de craques vai se formando assim, olhando sempre para a grana europeia ou asiática, o que ajuda a explicar a miséria em que se encontra a escola brasileira de futebol.
A trajetória de Pelé seguiu outra direção. Ele é de um tempo que não volta mais. O “crioulo” se tornou de fato um negão planetário. Tornou-se ídolo e empresário. Demoliu barreiras raciais mundo afora, assim como fazia nos campos em que jogava. Só não conseguiu impedir que o futebol se dobrasse ao mercado e os jovens atletas perdessem a referências.
Mesmo assim, vivido como mercadoria e entretenimento, o futebol continua a atrair multidões e a insuflar paixões.
Publicado na Revista Será? https://revistasera.info/2025/08/uma-viagem-pelo-mundo-do-futebol/