Não é difícil entender por que a democracia corre riscos. Nossa época é de transição. Estão a mudar o modo de produção, a organização do trabalho, os empregos, as formas de comunicação. Algumas mudanças já se sedimentaram, como no terreno da produção e circulação de informações, turbinadas pelas redes e pelas modalidades várias de autocomunicação de massas. A vida social sofre os espasmos dessas modificações: se desorganiza, se fragmenta, converte-se num território de indivíduos soltos que problematizam a participação política e despejam demandas no espaço público, exigindo sempre mais investimentos e direitos.
Como regime, a democracia está hoje submetida à desconfiança dos cidadãos, insatisfeitos com as respostas que obtêm dos governos. Está, também, sendo maltratada pelas correntes de extrema direita, que a violentam e a descaracterizam, e pelos populistas de variados tipos, que pouco se preocupam com fortalecê-la e protegê-la, ávidos que são pelos aplausos das multidões. Os grandes interesses econômicos, por sua vez, além de explorar a população, manipulam os institutos democráticos. Os personagens centrais da democracia representativa – os partidos, os parlamentares, os governantes – nem sempre vão além de proclamações retóricas em favor da democracia, deixando de adotar medidas que a blindem contra os ataques dos que a desprezam e a façam funcionar de maneira efetiva.
Apesar disso, a democracia continua respirando como valor. Vista como um sistema dedicado a viabilizar a participação política em condições de igualdade mínima – mediante o voto –, de liberdade, de direitos humanos e de vigência plena do Estado de Direito, a democracia permanece como horizonte ético e moral do mundo contemporâneo. Em nossas sociedades, a democracia é uma condição de possibilidade: sem ela, os cidadãos não são incentivados a defender sua privacidade em consonância com a pluralidade social. Deixam de interagir com os diversos pedaços da sociedade, que necessitam de procedimentos democráticos para se reaproximarem. A democratização do social vibra em todos os espaços organizados: nas escolas, nas famílias, nas empresas, nos esportes, na cultura, na política. Só freia sua marcha impetuosa diante das organizações fundamentalistas e de hierarquia rígida.
Há uma crise de autoridade por toda parte e a violência se esparrama, travando a recomposição social, que necessita de diálogo, temperança, paciência e serenidade argumentativa. É falsa a ideia de que autocratas obtêm submissão e obediência. Em sociedades complexas como as nossas, o máximo que conseguem é usar a intimidação e a ameaça para convencer parte da população a segui-los vida afora. Reprimem e estigmatizam os que a eles se opõem, num esforço para isolá-los do conjunto social. Autocracias populistas podem se reproduzir por longos períodos, caírem ao menor tropeço de seus líderes ou serem sugadas por crises não administradas. Em qualquer um dos casos, produzem estragos na política e no convívio social, deixando marcas que ferem a democracia e o Estado de Direito.
Nos regimes democráticos, combinam-se o conflito e o consenso, a liberdade e a ordem. A desobediência civil faz parte de suas regras, assim como o protesto e a luta social. O que conta são os procedimentos: pressionar, denunciar, reivindicar, mas não perder de vista o diálogo, a negociação e a civilidade.
O diálogo, afinal, é a trava de sustentação da democracia. É ele que garante a consideração das diversas opiniões e das demandas mais justas e emergenciais. Em vez da razão instrumental e da razão dos mais fortes, o diálogo instala a razão reflexiva, valorizadora do pensamento crítico, da ponderação e da análise dos argumentos. Com isso, desnuda as tentativas de fazer com que o poder possa tudo, como se estivesse à margem de considerações éticas ou morais. A razão reflexiva também facilita a navegação no mar de informações e desinformações com que temos de lidar, ajudando a que cada um consiga separar o lixo e neutralizar os ruídos tóxicos.
A democracia vigora sempre em equilíbrio dinâmico, que precisa ser continuamente alimentado. Está sempre em construção, não é um sistema perfeito. Quando o equilíbrio falta, o conflito se converte em guerra ou polarização paralisante, os interesses ficam exacerbados, como se não quisessem ou não soubessem se recompor. Crises se sucedem sem solução, criando condições para a emergência de lideranças autoritárias, salvadores da pátria, tida como ameaçada. É neste ponto que estacionamos hoje.
O equilíbrio requerido pela democracia não deriva somente de boas instituições e de governantes bem-intencionados. A prevalência do diálogo não é uma conquista de intelectuais ou de políticos falastrões: é algo que precisa se enraizar na vida social, modelar corações e mentes, infiltrar-se nas famílias, nas escolas, na cultura, na corrente sanguínea de cada cidadão. Ou seja, é algo que depende de educação, de práticas reflexivas e de empenho cívico.
Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/7/2023, p. A6.
Acabei de ler no Estadão o artigo “A herança de Bolsonaro para o presidencialismo de coalizão”, por Rodney Amador no blog “Gestão, Política & Sociedade” (27/07/2023 – não sei por que insistem em grafar “0” antes do numeral indicando os meses depois de fevereiro…). Menciono isso por causa de seus textos “A democracia precisa dos democratas” e “A democracia e seu equilíbrio”. Ainda não li seu “O hiperpragmatismo partidário”.
O fato é que o texto de Amador trabalha, digamos assim, “questões técnicas” sobre o exercício de poder aqui através dos recursos de nossas instituições. Elas passam desapercebidas de nós, simples cidadãos e meros mortais, sempre informados, quando curiosos, depois dos acontecimentos – iludidos com a tal participação via internet. No quadro geral, a palavra “ideologia” está sendo usada e martelada como coisa exclusiva da dita “esquerda”. Assim como a palavra “narrativa” está sendo incorporada como sinônimo de “mentira” ou “versão ideológica dos fatos”.
Antes de fazer História, lá na USP, fiz perto de seis meses na Sociologia e Política. Anos 70 e alguma coisa e, em certo dia, na sala de aula, estavam vc e Gildo Marçal Brandão. Não lembro o nome da professora ou sequer qual era a disciplina – creio que vc era professor assistente, algo assim, peço desculpas, sem ofensas na imprecisão. Vc, analisando o conceito de ideologia, apontou como ele estava presente em mínimas coisas, em nosso dia a dia e em nossas tomadas de decisão – onde ir, o que fazer e como etc. etc.
Estou falando tudo isso porque acredito que os grupos que se consideram de esquerda – e eles são! – estão confortáveis em suas “bolhas de debate de esquerda”. Refiro-me à criação de grupos cujos participantes têm em comum o envolvimento com os movimentos contrários ao golpe de 64. Gente honesta e tal, bacanas, lutaram contra a ditadura. Mas, ao mesmo tempo, não consideram outros vetores, no comando da sociedade, e na influência sobre a cultura dessa sociedade. Me parece que a análise política é substituída por uma avaliação moral dos setores conservadores e/ou retrógrados da sociedade e sem saber o que fazer com o espaço democrático. Como lidar com a realidade que não é mais “preto & branco”? Acabei terminando com uma pergunta, não era minha intenção.
Muito bom teu comentário! Concordo com ele, ponderado como sempre.Penso que o aprisionamento das esquerdas em suas bolhas é um dos grandes problemas do mundo atual. Não há movimento por hegemonia, no sentido gramsciano da expressão, preocupação em dialogar com a sociedade e formar os cidadãos. A questão única é como chegar ao poder e não perdê-lo. Acontece isso também com os democratas, que poderiam se movimentar com mais ânimo e apetite. Estão estraçalhados, encolhidos, dispersos, etc. O resultado é que o debate se torna miserável, sem conteúdo.