A democracia precisa dos democratas

Ramon Vergara
Ramon Vergara
A democracia digital não soterra a democracia nem tem como curar suas imperfeições. É um vetor de reorganização, que não dispensa a presença dos democratas.

Há uma questão posta na mesa: se praticamente tudo está tomado pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs), se a vida ficou digital, por que a política e a democracia escapariam ilesas dessa situação?

A democracia nunca foi um regime perfeito. Como valor, como princípio e proposta, tem seguido em frente com poucos arranhões. Quando levada à prática, porém, quando precisa interagir com as circunstâncias sociais concretas, esbarra em muitos desafios. Nos últimos tempos, giramos em torno da “crise da democracia” e da necessidade de reformar os sistemas políticos.

Com o crescimento das extremas direitas no mundo, a crise se aprofundou. Políticos autoritários, eleitos pelo voto popular, ganharam legitimidade para corroer os sistemas democráticos a partir de dentro, aproveitando-se da insatisfação social, dos efeitos da globalização, das ferramentas digitais e da desorganização das populações. As classes sociais foram engolidas pelas transformações em curso e, sem elas, os indivíduos ficaram soltos, formando multidões. Com isso, os partidos sofreram um baque identitário: já não mais conseguem atuar com referências objetivas claras nem com programas que se remetam a um ou outro grupo da sociedade. Passaram a funcionar no modo inercial, como estruturas burocráticas focalizadas exclusivamente na conquista e no controle do poder político, sem alimentar os laços que poderiam aproximá-los dos cidadãos.

A massificação da internet, dos computadores pessoais e dos smartphones revoluciona o modo como vivemos. Faz com que o espaço público fique plural e heterogêneo. A mídia impressa permanece central, mas as possibilidades abertas pelas TICs transformaram cada pessoa num gerador de mensagens e conteúdos. Vivendo hiperconectados, passamos a nos saturar de informações, sem saber bem o que fazer com elas. Graças aos estímulos compulsivos dessa situação, muitas pessoas espalham desinformação e bobagens, pondo em circulação uma montanha de boatos e narrativas, muitas das quais sem pé nem cabeça.

A situação se torna paradoxal. Na política, a participação no debate público aumenta, mas não se organiza. Indivíduos soltos, “empoderados” e ativos, recepcionam, amplificam e multiplicam mensagens a torto e a direito. O espaço público se converte num ambiente ruidoso e fora de controle, que confunde as pessoas e facilita a manipulação política.

Com grupos que se fazem e desfazem com rapidez, a política fica entregue ao influxo de indivíduos e multidões carentes de referências programáticas, que falam alto, incomodam e influenciam as instâncias de poder, servindo como insumo para o trabalho dos políticos, especialmente nos períodos eleitorais. O resultado é que a democracia perde estabilidade, funcionalidade e previsibilidade. Surgem, assim, novas condições de possibilidade para a emergência de líderes autoritários, formas variadas de populismo, governantes sem ideias, crises recorrentes.

A democracia digital é mais do que democracia eletrônica. Associa-se à introjeção de recursos tecnológicos nas práticas governamentais, na política e na administração pública (o governo eletrônico), mas vai além disso: assenta-se na profunda, célere e irrefreável digitalização da vida, quer dizer, no enxerto das TICs em toda a existência, social e individual. A hiperconectividade veio como algo impossível de ser evitado. Um belo dia, estávamos todos conectados em tempo integral, satisfazendo digitalmente todas as necessidades da vida prática, sensível e relacional. Viver conectado, em redes, agarrados a celulares, PCs e tablets – conversando, trabalhando, buscando prazer e diversão, interagindo, produzindo cultura, conteúdos e informações –, tornou-se uma condição existencial no século 21.

A democracia digital não soterra a democracia como tal, com sua cota de valores e princípios. Também não destrói a “velha política”. Simplesmente acrescenta novas camadas e novas expectativas a tudo isso. Nestes termos, é um vetor de reorganização, que, como sempre, não virá por inércia ou mecanicamente, ou seja, continuará a exigir a presença de atores políticos democráticos, qualificados para traduzir politicamente as pressões sociais e as inovações tecnológicas. A participação digital não elimina a necessidade de formas presenciais de participação, do mesmo modo que decisões tomadas online não podem preencher todo o universo das decisões políticas.

A democracia não será salva pela digitalização. Sistemas complexos, dinâmicos e pluralistas não podem ser salvos por um único expediente. Se a democracia apresenta déficits e imperfeições, não será com injeções tecnológicas que soluções poderão ser alcançadas. Os meios digitais são recursos importantes e precisam ser incorporados em nossos sistemas políticos. Mas nada avançará de fato se os democratas – políticos e cidadãos – não forem capazes de formular e executar reformas que qualifiquem a democracia e a adaptem às circunstâncias atuais.


Publicado em O Estado de S. Paulo, 24/06/2023, p. A6.

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Alfredo dos Santos Junior
1 ano atrás

Excelente reflexão, parabéns, professor. Partilhando nas minhas redes.

Maurílio Maldonado
1 ano atrás

Ótimo texto como de costume caro Marco Aurélio Nogueira!
Parabéns!!!

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