A doença e as máscaras de Trump

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Acidentes de percurso são manipulados e podem provocar mudanças de última hora, confundindo os eleitores.

Donald Trump foi hospitalizado na sexta-feira, dia 2 de outubro. Consta que havia testado positivo dois dias antes, juntamente com sua esposa Melania. Recebeu tratamento de choque, com a utilização de diversas terapias, algumas ainda experimentais. Na calada da tarde de sábado, deu uma escapadinha e fez um rolê de carro pelas cercanias do Hospital Milita, para saudar seus seguidores e mostrar a mesma vitalidade de que tanto se orgulha. Voltou rapidamente para o quarto. Teve alta no começo da noite da segunda-feira, dia 5, com a recomendação médica de ficasse isolado em um quarto da Casa Branca.

Saiu de helicóptero do hospital, mas ao chegar à sede do governo, não só tirou a máscara, numa pose teatral, como fez questão de disparar: “Estou melhor do que há 20 anos. Não temam a Covid, saiam de casa. Hoje eu sei tudo sobre a doença, aprendi sobre ela na escola real, não nos livros”.

Foi uma tentativa, calculada, mas meio desesperada, de voltar à batalha eleitoral, depois do golpe sofrido com a contaminação, que também atingiu diversos colaboradores da presidência. A máscara da manipulação política substituiu a máscara antiviral.

Instado pelo jornalista Sergei Cobra, da Rádio Cultura, que me perguntou sobre o impacto que a doença de Trump teria sobre o processo eleitoral norte-americano, insisti no básico: eleições são sempre caixas de surpresas, e não há como antecipar seu desfecho. Elas somente terminam quando o jogo acaba de fato, e os últimos votos são contados.

Ainda mais nos Estados Unidos, que dispõem de um complicado sistema de votação, no qual os votos populares não são os personagens principais, cedendo esse posto para os delegados eleitos estado a estado. Consensos obtidos na sociedade, evidentemente, são importantes, até para servir de orientação aos delegados e medir o pulso da sociedade. Mas as máquinas partidárias, que são fortemente enraizadas em termos estaduais, pesam muito, dificilmente sofrem alterações. A bancada republicana eleita em dado estado não conhecerá cisões a ponto de votar em Biden no colégio eleitoral. E vice-versa.

Há mais. Eleições são sempre influenciadas pela biografia dos candidatos, por mais que devamos sempre  admitir que dados biográficos e trajetórias podem ser construídos e descontruídos, além de serem objeto de manipulações dos próprios candidatos, mediante simulações e dissimulações.

A imagem de Trump, por exemplo, é a do voluntarioso autossuficiente e arrogante que se apresenta como determinado a fazer a América grande de novo; não admite vacilações ou titubeios, fraqueza física ou falta de confiança. A seu favor tem uma trajetória de sucesso no mundo empresarial, onde, porém, também ergueu uma carreira repleta de furos e episódios pouco dignificantes. É um milionário que pouco sabe da vida cotidiana das amplas maiorias. O eleitor americano médio talvez não dê maior importância a essas contradições, mas elas estão na mesa. Um presidente que vocifera, não sorri, que dá ordens peremptórias o tempo todo, não gosta de debater e não ouve o que seus interlocutores dizem, que exibe inflexibilidade e jamais cede, não é propriamente a imagem de um estadista em condições não só de reduzir as áreas de conflito e polarização dentro de seu país, como também de repor a capacidade de fazer política no exterior, recuperando a dimensão de soft power que os EUA sempre tiveram. Trump, além disso, não é um republicano; não seduz o partido, não o conclama; é um individualista, que fez dos trumpistas uma ala do Partido Republicano.

Já Biden trilha estrada oposta: é lhano, gentil, tem uma biografia ancorada na vida familiar padrão, com vários episódios pessoais dolorosos que não o deixaram mais fraco, e o fortaleceram. É membro ativo do Partido Democrata e sempre se remete a ele. Promete governar coletivamente, agregando os melhores quadros. Consolidou longa carreira política, como parlamentar e vice-presidente, o que lhe deu experiência e capacidade de articulação, qualidades que se mostram indispensáveis para agir como estadista dentro e fora do país. São seus maiores trunfos, que compensam, com vantagem consistente, os eventuais “defeitos” que possa apresentar, como o discurso cheio de bugs, a aparência de fragilidade física, a moderação excessiva, e assim por diante.

A doença pode desgastar a imagem de Trump, mas também pode ser usada para mostrar que, sim, ele foi capaz de vencer o vírus e mostrar que não se tratava de algo tão grave assim. Tudo dependerá da gravidade da doença, do quanto ela vier a machucar o republicano, de como ele sairá do hospital. São muitos imponderáveis.

Acidentes de percurso, por poderem ser manipulados e serem inesperados, costumam produzir decisivos efeitos de última hora. Tendem a gerar, por exemplo, aquilo que se costuma associar à “compaixão” do eleitor, fato difícil de ser controlado.

Hoje, o que dá para afirmar são duas coisas.

Os bruxos do Partido Republicano estão arrancando os cabelos para descobrir como instrumentalizar eleitoralmente a doença de Trump; não ficarão imóveis, como se tivessem de esperar a evolução natural da enfermidade. Também terão de encontrar um modo de engatar de novo a campanha, meio baqueada com a ausência do personagem principal.

A segunda coisa é que políticos como Trump (autoritários autocentrados, arrogantes, cínicos, manipuladores) não são dúcteis, dificilmente modificam sua “natureza”, não têm como fazer isso, não sabem trocar de roupa sozinhos. São escravos de sua estrutura psíquica, de sua cultura, de seu modo de ser, muito mais do que pessoas como Biden, que ao longo da vida cultuou a serenidade e a moderação.

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