A militância cordial de Astrojildo Pereira

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Um excepcional empreendimento editorial possibilita o acesso às obras do crítico cultural, que tem muito o que nos ensinar sobre o Brasil

Não são muitos os brasileiros que conhecem Astrojildo Pereira (1890-1965), crítico cultural de primeira linha, estudioso da literatura brasileira e intelectual politicamente engajado. Para os mais informados, ele é lembrado como um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro em 1922 e autor da primeira história do partido, publicada em 1962.

Astrojildo foi muito mais do que um comunista militante. No começo do século XX, frequentou o anarquismo, de onde passou para o PCB, do qual se afastou para depois retornar, cultivando um espaço próprio de atuação. Autodidata, dedicou-se à história das ideias e à crítica literária. Foi comunista até o fim, acreditava que seria melhor “errar coletivamente do que acertar individualmente”, mas nunca aceitou os esquemas rígidos do partido ou suas lutas internas intermináveis. Suas relações com o PCB foram marcadas por idas-e-vindas, mas jamais houve rupturas definitivas. Astrojildo era discreto e elegante.

Como acontece com muitos personagens marcantes, há bastante coisa dispersa, mal conhecida e não documentada sobre Astrojildo, um intelectual que merece ser reconhecido e estudado.

A Editora Boitempo e a Fundação Astrojildo Pereira nos dão, agora, uma rara oportunidade de superar a lacuna que cerca o intelectual. Acabam de publicar uma caprichada caixa com 6 volumes muito bem editados, 5 dos quais formam uma espécie de obras completas de Astrojildo. É um excepcional empreendimento editorial.

Cientes do pouco conhecimento que se tem do autor, as editoras tiveram a ótima ideia de incluir, na caixa, o livro de Martin Cesar Feijó, O revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural, que traça com rigor sua trajetória política e intelectual. Feijó buscou nos textos de Astrojildo as tensões entre revolução e modernidade, bem como a constante preocupação de incentivar a formação intelectual, moral e estética de todas as pessoas, em condições iguais e democráticas. O revolucionário seria cordial em vários sentidos, que Feijó ressalta com uma bela imagem: não necessitaria “abrir mão de sua indignação e de suas convicções, mas sim estar aberto para o inesperado, para o novo, para a perplexidade e principalmente para o diálogo”.

Formação do PCB é o texto de referência quando se trata da história do partido comunista. Há nele artigos e notas sobre as lutas operárias desde o final do século XIX até a fundação do partido. É um livro épico, com traços memorialísticos, que mostra a dedicação de Astrojildo à causa comunista e sua participação na evolução do PCB como um “partido que pesa de maneira positiva e permanente na vida política nacional”.

O melhor Astrojildo aparece nos ensaios reunidos em Machado de Assis, publicado em 1959, que analisa com rigor a obra e a vida de Machado, tratando-o como um autor “que o povo compreende, ama e exalta”.  E também em Crítica Impura, de 1963, que reúne artigos e resenhas escritas entre 1930 e 1960. Notadamente nesse volume, vê-se um Astrojildo atento às questões do seu tempo, combatendo em nome da necessária “impureza” que a crítica precisaria ter, isto é, recusando a arte encasulada, à margem das lutas políticas e ideológicas.  Sua amplitude de visão, sua curiosidade intelectual, sua entrega pública, impulsionam um esforço para mapear a produção cultural da época. Há textos sobre Cuba, o caso Sacco e Vanzetti, Eça de Queiroz, José Veríssimo, Monteiro Lobato, Lima Barreto, a China comunista. Como escreveu Leandro Konder em artigo incluído no livro, Astrojildo mostrava, ali, que entre a crítica “de gabinete” e a militância acrítica sempre há espaços para se atuar “como um genuíno intelectual marxista”.

Em Interpretações, de 1944, reúnem-se textos redigidos entre o Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial, que, de modo polêmico e agudo, capturam importam elementos da história literária, política e social brasileira e das questões internacionais. Escrevendo em um momento de ascensão do nazismo, Astrojildo é pura indignação reflexiva, atenta aos dilemas do momento. O volume inclui um de seus grandes textos, “Posição e tarefas da inteligência”, que defende, desde as primeiras linhas, a tese de que a democratização no pós-guerra precisará assentar seus fundamentos primordiais em uma “nova estruturação econômica da sociedade” e “abranger os mais largos domínios da cultura”, de modo a que todos possam “gozar livremente dos benefícios da cultura por meio da instrução integral”. Uma tese que continua inteiramente válida ainda hoje.

O programa de Astrojildo, naqueles anos, incluía o combate ao fascismo brasileiro, que ele via como uma cópia das milícias fascistas italianas. É o centro do volume URSS Itália Brasil, lançado em 1935. Lá encontramos essa pérola, de grande atualidade: “Brasilidade radical, nacionalismo puro, horror ao exotismo, xenofobia política, fraseologia por vezes anticapitalista e anti-imperialista… – tudo isso é tapeação. Óleo de rícino engarrafado com o rótulo de guaraná”. Se olharmos com atenção para o Brasil bolsonarista, não será difícil ver quão premonitória foi a sacada do crítico.

A história nacional não possibilitou que se realizassem as propostas e preocupações de Astrojildo Pereira, mas garantiu a ele um lugar de rara coerência intelectual na vida brasileira. Agora, com suas obras postas à disposição, podemos conhecer melhor sua trajetória.

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