“Coringa” é um filme feito sob medida para o talento de Joaquin Phoenix. O ator se entregou por inteiro ao personagem, como raras vezes se vê no cinema. Captou com riqueza de detalhes a trajetória do pobre Arthur, comediante frustrado, um looser emocionalmente perturbado que vive entre a insanidade e a lucidez.
O personagem evolui em direção ao mal, como todos sabem, mas não o faz movido só por desequilíbrio. Sua “loucura” é matizada, não é propriamente uma doença mental, mas um estado d’alma atormentado, onde se misturam doçura e fantasia, alucinações e delírios. A partir de certo ponto, Arthur não consegue mais acomodar suas frustrações, conter seus próprios demônios, quem sabe conviver em harmonia com eles. Sossegar, enfim. Arruma uma treta violentíssima no metrô que termina por desencadear uma fúria coletiva.
Há dor e “cálculo” nele, o que o faz perceber que as circunstâncias sociais abrem espaço para que surja um líder de novo tipo, disposto a levar ao paroxismo a revolta e a indignação dos humilhados, dos explorados, dos que não encontram meios de viver a vida com dignidade.
O comediante desempregado se vê convertido no inesperado herói dos desgraçados.
Em sua trajetória lateja um grito de angústia que, sem conseguir encontrar canalização política institucional, explode em matança e depredação. O que fez o filme repercutir, ser amado e odiado, visto por uns como prenúncio da revolução que se anuncia e por outros como incentivo à violência.
Inflaram “Coringa” de expectativas que fogem ao que é mostrado na tela: a história de uma pessoa incapaz de dominar seus demônios internos e espicaçada por um ambiente social em decomposição. Suas flutuações entre o delírio e a lucidez, seus fracassos sucessivos, vão fazendo com que enverede por uma trilha de demência, numa espiral da qual não consegue escapar.
Se indevidamente inflacionado de expectativas, o filme deixa de ser o que realmente é, uma “diversão” inteligente, muitíssimo bem filmada, com um Joaquin Phoenix excepcional, dedicado a uma performance artística comovente, que prende e fascina. Se formos além, cairemos em uma cilada chapada e maniqueísta: os ricos são por definição maus, indiferentes, ignoram o ambiente em que vivem, pisoteiam as pessoas trabalhadoras que, também por definição, são boas, solidárias, cooperativas.
O diretor Todd Phillips releu o universo Batman. Nos quadrinhos, que começaram a ser desenhados nos anos 1930, a tensão ricos vs pobres não é clara: há os bons e os maus por sobre a luta de classes, os mocinhos existem para prender os bandidos, Bruce Wayne tem sede de vingança e de justiça, pensa que o mundo sem crimes é um mundo melhor. Mas também quer caçar o assassino dos pais.
O Coringa é um personagem dividido, demens-sapiens, doce e perverso. Lança-nos nos limites da loucura que habita cada um de nós mas que, em Arthur, sai de controle.
Mesmo que maniqueísta, a narrativa sugere que, se nada for feito, viraremos uma grande Gothan City global. O aprofundamento da assimetria das relações sociais trará consigo mais atrito e despedaçamento. A “mensagem” do filme é que não há saída, tudo terminará inevitavelmente em morte e destruição. Algo que mais tarde Batman será chamado a combater, ele também um cavaleiro solitário, um self-made man que dispensa esforços coletivos e cria outra narrativa: finalmente um rico sai de seu casulo para proteger a comunidade, ainda que sem incomodar os ricos. Agindo nas trevas, à noite, a imagem aterrorizante do morcego e a voz cavernosa servem para intimidar os criminosos.
Só que Batman não tem trégua, pois em Gothan City a maldade brota sem cessar, produz uma fileira interminável de inimigos. O Coringa é o mais ardiloso, o mais cruel e imprevisível de todos eles, o mais fascinante. Por sua complexidade e pelo que provoca de sentimentos contraditórios.
É uma metáfora exagerada e caricata, mas adequada para os tempos sombrios com que temos de lidar.
Teus textos sempre me agradam, mas este em específico ensina, dialoga, questiona e conclui! Obrigada!
Obrigado, Gleici, pelo comentário generoso! Abraço