O cinema e a cultura nacional têm bons motivos para comemorar a indicação ao Oscar de Democracia em Vertigem (Netflix). Mesmo que paradoxal, a perspectiva de atravessar o tapete vermelho da Academia de Hollywood é um sopro de ar fresco nesses tempos de agressão à produção cultural brasileira.
O filme de Petra Costa é bem feito, tem ótimas imagens e muita criatividade. Procura denunciar táticas e estratégias, ao mesmo tempo em que deseja discutir as dificuldades da democracia nos dias atuais, com direito a uma tentativa de recuperar a história política brasileira. Seu andamento atrai, embora seja longo em demasia, o que acarreta algumas repetições e muita reiteração de teses problemáticas. É uma obra engajada, assumidamente “de esquerda”, feita por uma cineasta preocupada em ser parte do jogo, tomar partido e defender uma interpretação sobre os episódios que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff.
O filme concorre na categoria “documentário”, mas não é propriamente um documentário, ou o é de maneira singular. Está longe de ser uma “obra de ficção”, como se apressaram em dizer Bolsonaro e ministros com o intuito de estigmatizar o filme. Para variar, o bolsonarismo enxerga ideologia em tudo e seu reacionarismo defensivo não consegue dar conta da realidade complexa em que vivemos.
Trata-se de uma combinação de fatos, imagens e reminiscências pessoais, por meio das quais Petra Costa se mostra ao público e apresenta sua interpretação. São várias as referências à sua história familiar, à militância e à prisão dos pais, à construtora do avô Andrade Gutierrez, aos seus sonhos e ilusões de antes, às suas decepções, à sua perplexidade. É a história sendo narrada muito mais pela ótica pessoal do que pelo encadeamento dos fatos. Repousa aí sua força e sua atração maior, aquilo que explica os aplausos que o filme vem recebendo. Ele não busca a verdade fatual, mas quer narrar a tragédia de uma geração e de um modo de pensar a política. É quase um épico.
Como toda obra engajada, Democracia em Vertigem é parcial: toma partido. Não pode ser criticada por isso, muito ao contrário. Mesmo um documentário bem sisudo é no fundo uma tomada de posição. Petra não mostra tudo, nem conta os fatos de modo necessariamente convincente. Seu interesse está em compor uma narrativa: Dilma sofreu um golpe orquestrado pela direita, hostil a Lula e ao PT, e com isso abriram-se as portas para a vitória da extrema direita em 2018. O ângulo de observação supõe que o Brasil tem uma história de repressão, autoritarismo e golpismo que não se superou e que está colada ao País real como uma segunda pele. É o que faz com que, por aqui, a democracia seja “um sonho efêmero”.
Não é uma tese inquestionável, mas funciona como ponto de partida para uma boa discussão.
Petra Costa não pretende fazer isso, mas acaba naturalizando a história nacional, ao vê-la como um processo marcado por tendências imutáveis: a violência contra os pobres, a corrupção, o egoísmo predatório das elites, a submissão ao imperialismo. Tudo o mais são esforços vãos, tentativas fadadas ao fracasso. A vitória de Lula em 2002 gerou esperança e entusiasmo, mas foi engolida pela entrega ao jogo sujo da política, à conciliação, à repetição de “práticas sempre criticadas” e a “alianças com a velha oligarquia”.
Mais tarde, em 2011, quando Dilma toma posse, abriu-se “um precipício entre ela e seu tenso vice-presidente”, Michel Temer, enfiado na Presidência por exigência do golpista PMDB, num “casamento arranjado” que não poderia dar certo. O sinal viria com as manifestações de 2013, um “abalo sísmico” que abriria as comportas da crise, criando uma “fissura profunda, que nos dividiria”. Daquele momento em diante, “nada mais seria igual”.
No centro da mesa, a crise política, os percalços da economia, as dificuldades da democracia, a corrupção que domina e corrói. Tudo é apresentado de forma passional, com ênfase dramática. A corrupção não tem como ser contida, é uma praga que se sobrepõe à política e finca raízes no domínio implacável das oligarquias. “Somos uma república de famílias, umas controlam a mídia, outras, os bancos. Elas possuem a areia, o cimento, a pedra e o ferro. E de vez em quando acontece de elas se cansarem da democracia, do Estado de direito”.
Veio a Lava Jato, que põe à luz do dia o conluio das empreiteiras com o poder mas não purifica o País nem preserva o que se havia conquistado. Foi triste, diz Petra, “ver o partido que elegemos na promessa de mudar o sistema se embrenhando numa estrutura de financiamento de campanha desenhada para tornar qualquer mudança impossível”. Até para se proteger, a direita insiste na operação para eliminar a esquerda e o PT. Ganha terreno.
O resultado é o “desmoronamento” da esquerda que os pais de Petra sonharam. Lega-se assim ao futuro um “país rachado”, repõe-se uma democracia “fundada na escravidão e no esquecimento”.
Democracia em Vertigem é um filme triste, o que surpreende por ser Petra Costa tão jovem. Pode ser visto como um esforço pessoal da cineasta para se desfazer de ilusões e fantasias comuns a boa parte da esquerda brasileira, um seu encontro com o realismo e os fatos duros da vida. Mas o pessimismo atravessa o filme de cima a baixo, soterrando as utopias sob os destroços de um passado que não acaba de passar jamais.
As perguntas finais feitas pelo filme são pungentes, expressam uma emblemática falta de saída e de perspectiva. “Como lidar com a vertigem de ser lançada em um futuro que parece tão sombrio quanto o nosso passado mais obscuro? O que fazer quando a máscara da civilidade cai e o que se revela é uma imagem ainda mais assustadora de nós mesmos? De onde tirar forças para caminhar entre as ruínas e começar de novo?”.
Um Oscar pode impulsionar um filme que merece ser assistido, pelo convite que faz à reflexão. Democracia em Vertigem deve ser recepcionado, porém, não tanto como um documento da história política brasileira, mas sim como depoimento de uma geração que não consegue encontrar seu lugar no mundo.
“São várias as referências à sua história familiar, à militância e à prisão dos pais, à construtora do avô Andrade Gutierrez, aos seus sonhos e ilusões de antes, às suas decepções, à sua perplexidade.”
Faltaram outras referências significativas que ajudam a entender o contexto familiar em que vive – o que, normalmente, informa sobre a própria pessoa.
Segundo um amigo cientista social mineiro, muito bem informado: “sobre a “famíglia” de Petra Costa: seu pai, Manoel Costa, da elite mineira sanguesuga, o atraso em pessoa, foi Secretário do Estado de Minas para Reforma Agrária. Foi exonerado recentemente (creio que no Governo Anastasia) acusado de grilagem de terras no norte de Minas, onde a família da moça já é dona de grandes extensões de terras!
Essa notícia foi bastante divulgada, mas mais em Minas. Mas pouca gente relaciona a Petra …com o pai grileiro e ex-militante do PCdoB. …o pai teria um envolvimento com terras e governos desde o Governo Sarney, cuja política de reforma agrária foi entregue ao PCdoB, não só em Minas!
Ótimo artigo, professor. Deixe-me perguntar sobre uma questão que é abordada no texto. O “movimento” de 2013 teve, na sua opinião, o impacto de causar o “abalo sísmico” apontado? Obrigado. Grande abraço.
É difícil dizer que houve “abalo sísmico”. O que houve foi um estrondo popular e uma incapacidade de resposta das forças políticas. 2013 ajudou a mostrar a desorganização dos políticos e a falência dos partidos.