Diário do Confinamento 1:
Reaprender

Abraham Palatnik. Progressão em jacarandá. Folhas de jacarandá. 80 x 125 cm
Abraham Palatnik. Progressão em jacarandá. Folhas de jacarandá. 80 x 125 cm
Teremos uma overdose de vida digital. De que maneira sairemos, com qual bagagem? Que lições tiraremos? O confinamento mostra a cara feia do mundo, o egoísmo e a generosidade.

Isolamento, distanciamento, quarentena. As palavras flutuam, como pluma ao vento, ao gosto. Briga-se por elas. Distanciar? Como assim, num país em que a distância social já é em si mesmo brutal, obscena? Há muros que isolam brasileiros uns dos outros, os pobres e miseráveis separados dos demais.

A diretriz é evitar contatos e aglomerações. Ficar em casa, circular o menos possível. Confinamento, mais que isolamento. Hibernação.

Situação que nos faz prezar a própria companhia, conviver consigo mesmo, visitar os demônios internos. Rememorar. Ruminar. Ter medo, preocupação.

Descobrir prazeres que estavam diluídos, recuperar filmes antigos, ouvir velhas e novas canções, chorar diante de fotos esmaecidas, tropeçar naqueles livros de que se esquecera, limpar gavetas e estantes. Descartar. Reorganizar. Reviver.

Aprender coisas novas, melhorar seus conhecimentos e habilidades, uma língua ou um artesanato, por exemplo. Desenhar, pintar, cozinhar. Cuidar da casa. Redecorar.

Dar-se conta da inutilidade de certas coisas. Passar roupa, um supérfluo rotundo, retumbante. A limpeza obsessiva, exagerada. O uso de notas e moedas. As idas diárias ao mercado, às caixas bancárias eletrônicas ou à farmácia. O delivery resolve tudo. Saudades das praças e ruas, das visitas, dos cafés no bar da esquina, dos almoços em família.

Valorizam-se outras tantas. Pensar nas amizades, saber dos amigos. Curtir filhos e netos de modo não presencial. Amar de longe. Respeitar a ciência e seus pesquisadores. Confiar.

O confinamento acelerou processos que estavam em curso. O mergulho no mundo digital, os encontros virtuais, as calls conference, as aulas a distância, os memes, as conversas telegráficas, o home office, a velocidade, a profusão de imagens e informações. Tudo isso entrou de vez na corrente sanguínea, passou a plasmar o DNA humano. Será difícil que se volte a viver presencialmente com a mesma intensidade de antes.

Teremos uma overdose de vida digital. De que maneira sairemos, com qual bagagem? Que lições tiraremos? Poderemos aperfeiçoar o uso das tecnologias de comunicação, percebermos o mal que fazem as fake news, a circulação emotiva, imediata, não refletida, de notícias que recebemos e repassamos sem pensar duas vezes. Decodificar os boatos, deletá-los. Limpar a área.

Por mais que os teóricos da conspiração digam, não há responsáveis pela disseminação do vírus. A culpa não é de alguém, não é nossa, da Humanidade perdida ou da globalização. É o efeito colateral do tráfego humano pelo planeta, incessante e crescente desde a saída das cavernas. Decorrência, também, da incúria onipotente, da falta de higiene, da miséria produzida, da exploração desenfreada, da irresponsabilidade, dos deslocamentos desnecessários, da movimentação frenética.

Boas doses de idealismo e de altruísmo nos farão bem. Podemos sair da crise em melhores condições. O importante é sobreviver, preservar o sistema de saúde e a capacidade dos hospitais, driblar o fluxo contínuo de informações contraditórias, com seus ecos paranoicos. Manter ativa a perspectiva de que lá fora, no exterior de nossos casulos, pulsa uma vida que haveremos de recuperar. Afinal, tudo muda, e com grande rapidez. Como uma onda: “Nada do que foi será/De novo do jeito que já foi um dia/Tudo passa, tudo sempre passará”.

O confinamento está a mostrar a cara feia do mundo, as iniquidades sociais, a ruindade dos governantes, a ausência de bússolas. O egoísmo e a generosidade. Está também a evidenciar que viver é mesmo perigoso e que precisamos nos dedicar a aprender sempre mais, a adquirir sensibilidade e empatia, a pensar no coletivo. Reaprender, quem sabe até mesmo começar de novo.

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Sizenando
4 anos atrás

Tomei a liberdade de tuitar o link para seu oportuníssimo diário.
Também compartilhei no LinkedIn, tentando colaborar com ares e reflexão mais significativos do que a mesmice generalizada naquele espaço corporativo.
Seu texto vem em hora certa. Aproveito pra sugerir que vc acesse um texto com questionamentos semelhantes ao seu. É de Marcelo Macedo Corrêa e Castro da UFRJ:
“As ciências humanas e a pandemia”
(https://ufrj.br/noticia/2020/04/13/artigo-ciencias-humanas-e-pandemia)

Grande abraço, aguardando pelo dia 2!

Francisco Eduardo Britto
4 anos atrás

Belíssimo texto, sensível, abrangente. É tudo isso mesmo, para nós que estamos no mesmo estamento dos que tiveram boa família, boa formação, têm alguma garantia ou poupança a queimar nesse momento da maresia… Não será tão assim para quem não tem isso. Se não teve boa família ou boa formação, pode ter até dinheiro, mas não será dessa forma que olhará o momento, como uma oportunidade de arrumação e progresso. Vai olhar muito mais com apreensão, medo, antes até de pensar nas dificuldades diversas para levar a nova vida diária. Mas a cada um conforme seu kharma. Também é um kharma do planeta humanizado, ou seja, nosso. Pena que essa situação global pega um Brasil tão fragilizado, tão no fundo do poço social, cultural, e quase espiritual. Tiraríamos de letra, se fôssemos aquele Brasil que imaginávamos, quase alcançamos, mas que se perdeu no caminho… Kharma de nação. Um kharma dentro de outro… Mas, sim, nesse momento agudo, trabalhemos o nosso, enquanto pessoas, ao menos.

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