De repente, começaram a mencioná-lo. Nas redes, sobretudo, formaram-se bolhas de admiradores e pessoas dispostas a dar-lhe o voto, convencidas de que finalmente encontraram uma opção.
João Amoêdo tornou-se subitamente um case de sucesso eleitoral: com muito dinheiro e pouca estrutura, foi ampliando sua visibilidade, graças à existência, na opinião pública, de nichos consistentes de expectativas liberais. Não deverá crescer muito, mas atrapalhará seus adversários e cavará um espaço na política nacional.
O suposto de que parte o candidato do Partido Novo está na boca de todos: é preciso criar uma opção à velha política, feita de privilégios e alianças espúrias, que prejudicam as pessoas.
É algo que o aproxima do que falava Marina Silva em 2014, quando defendia a “nova política”. Amoêdo navega nas mesmas águas do movimento suprapartidário Livres, hoje coordenado por Elena Landau.
Só que, diferentemente da candidata da Rede e da filosofia dos Livres, Amoêdo segue a trilha de um fundamentalismo liberal na economia combinado com pitadas de conservadorismo no plano comportamental. Criou para si um atalho inteligente: não incorpora os temas morais porque não quer trazer “mais uma variável, pois já temos problemas graves de segurança, na educação e na economia”. Resolvidos esses, seria possível enfrentar o tema da descriminalização da maconha, por exemplo. Além disso, diz sempre que é liberal “nas questões comportamentais porque respeita a opinião de cada um”.
É um atalho que o protege e que facilita sua fuga dos temas que colidem com seu credo ideológico. É muito diferente do que fazem os Livres, que assumem uma agenda liberal abrangente, na economia, na política e no terreno moral. Os Livres querem desfraldar bem alto a bandeira da liberdade, propondo o combate à burocracia, um Estado eficiente, mais próximo da população, com igualdade de oportunidades e facilidades para os empreendedores de todas as rendas. Como disse Elena Landau numa recente entrevista, “também defendemos a liberdade nos costumes, uma pauta mais progressista, com liberdade de expressão, casamento homoafetivo e legalização da maconha”, acrescentando: “Deixamos de usar a palavra liberal porque ela ficou distorcida, já que muitos candidatos conservadores que não têm nada de liberal usam essa palavra. O Livres trabalha para dar ao cidadão a possibilidade de ser dono de seu destino”.
Fundador do Partido Novo, Amoêdo se define como empreendedor. A crítica à “política tradicional” caminha junto com sua imagem de outsider. Propõe-se a reformar a política mediante a eliminação do Fundo Partidário, do fundo eleitoral e do horário gratuito de propaganda, além da redução do número de parlamentares no Congresso, nas Assembleias Estaduais e nas Câmaras Municipais. São pontos que, em sua formulação, ajudariam a combater a corrupção e a diminuir gastos públicos. Ou seja, são pontos que preservam o núcleo de suas proposições: a redução do papel do Estado, que considera gigantesco, ineficaz e burocrático. Nessa linha, defende a privatização da Petrobras, dos Correios e do Banco do Brasil.
Amoêdo tenta comer pela borda. Sua estratégia é de fixação de imagem e, eventualmente, de construção partidária. Nada a objetar quanto a isso. Ele está na disputa para marcar posição. Tem conseguido, surfando nas ondas de um ambiente que manifesta desencanto com a política tradicional e está seduzido pelas promessas de mais liberdade de mercado, empreendedorismo e privatização, mais valorização do indivíduo, menos Estado e regulação, tudo devidamente amarrado num pacote escrito “menos PT”.
Ele prega, por essa via, uma espécie de antipolítica bem comportada, sem histeria.
Vai desse modo contornando obstáculos e limitações, explorando as fraquezas dos adversários e os pontos mais consensuais da opinião pública, como o combate à corrupção e aos privilégios, a rejeição da política de conchavos e o horror à política-poder. Ainda que não tenha se convertido, até agora, em um concorrente vigoroso, Amoêdo está encontrando receptividade.
Em seu credo, porém, há algumas pedras que ele não tem conseguido deslocar.
Amoêdo se apresenta como um self-made man, que enriqueceu com o suor do próprio rosto, trabalhando duro sem jamais se valer de apoios estatais ou amizades governamentais. Como fez carreira no sistema financeiro, porém, a afirmação não corresponde inteiramente à verdade, pois é nesse setor que as ingerências estatais e as amizades governamentais mais se fazem sentir, o que pode sugerir que ele, candidato, também é filho dos mesmos privilégios que jura agora repudiar.
O liberalismo mitigado de Amoêdo é uma versão não confessada do neoliberalismo, do liberismo. Deposita esperanças em um mercado livre de regulações. É assim que vão suas propostas para a saúde e a educação, por exemplo.
Na primeira, é genérico e impreciso. Seu programa faz um diagnóstico dramático do sistema público de saúde, combinando aumento de doenças com falta de recursos e falhas gerenciais. Diz que pretende fazer o Brasil ser “saudável, com elevada longevidade e baixa mortalidade infantil”. Para tanto, pretende refundar o SUS, por vê-lo como não contando com a confiança da população e carecendo de novos métodos de gestão. Para os hospitais, a tônica também está na gestão, com mais parcerias público-privadas, mais espaços para o terceiro setor e mais governança. A ideia de privatização é mais forte do que a de uma cooperação equilibrada entre o público e o privado, com o que o SUS termina por ser desvalorizado.
Na educação, fala em manter as escolas públicas, mas propõe “dar um vale-educação para que algumas famílias mais pobres consigam colocar seus filhos em escolas privadas”. Se a providência for estendida, podemos pensar que todos acabarão indo para as escolas privadas, sujeito oculto da oração, ali introduzido para seduzir as famílias descontentes com a escola pública. Como não haverá vales para todos, os prejudicados terão de se contentar com a oferta do setor público. É uma visão mesquinha do Estado social que, no Brasil, está garantido pela Constituição.
O liberalismo de Amoêdo esconde um truque difícil de ser desmontado a olho nu. É que ele parte do princípio de que a sociedade civil está separada organicamente da sociedade política. Como o mercado faria parte da primeira (ou seria um terceiro setor), o Estado não poderia interferir em sua regulamentação. Tudo deveria ficar a critério dos agentes da sociedade civil. Acontece, porém, que a separação feita por Amoêdo não se sustenta na vida prática, onde Estado e mercado estão quase que fundidos. Donde se pode concluir que a liberdade de mercado não é algo dado, que caia do céu, mas é uma escolha política, um tipo de regulamentação estatal, mantida por via legislativa e governamental. Deixar livres os agentes é, de certo modo, manter o Estado nas mãos do mercado, ou, o que dá no mesmo, fazer o Estado adotar o programa econômico do mercado.
Há nele, ainda, um segundo problema mal resolvido. É que mesmo sem o Estado, as chamadas forças do mercado não têm como operar livremente ou tomar decisões com autonomia, pois são coagidas por gigantescos cartéis formados pelas grandes corporações globais. Os dirigentes desses conglomerados fixam preços, manejam expectativas, fabricam desejos de consumo e se articulam com políticos para manipular mercados, produtores e consumidores. O empreendedor e as empresas em geral não têm como escapar dessa dinâmica sem políticas estatais reguladoras que redimensionem o crescimento econômico, protejam os empregos e criem condições de competitividade para os mais fracos.
Amoêdo não é “o” liberalismo, mas uma versão conservadora do liberalismo. Nenhuma objeção a que concorra com essa bandeira, que faz falta no Brasil de corporações em que nos encontramos. Quer mais mercado e pouco Estado. Posicionado no terreno da democracia, expressa a direita civilizada, aberta ao diálogo e ao debate de ideias.
Suas virtudes, porém, não são suficientes para compensar suas limitações. O conservadorismo liberal não conversa com o Brasil real e suas gigantescas carências sociais. Põe-se de modo passivo diante do mundo líquido dos dias atuais, oferecendo-lhe muito pouco em termos de construção positiva. A valorização fundamentalista do indivíduo e a desvalorização de tudo o que é estatal fazem com que seus discursos fomentem egoísmo e não-solidariedade, descartando demandas importantes de muitos setores sociais.
Seja como for, a tese de que não se deve transferir responsabilidades individuais para o Estado – que o Estado deve se afastar de todas as áreas em que o indivíduo pode atuar – amplia a expectativa de liberdade e independência que mora em muitas cabeças, especialmente nessa época de liquidação institucional e de antipolítica. É um eco da “modernidade líquida” em que estamos a viver.
A agenda de Amoêdo é pobre no que diz respeito à reforma do Estado brasileiro. E quanto ao sistema político, em vez de pensar em “civilizar” a política tradicional como modo de recuperar a política, por exemplo, opta pelo discurso hostil aos políticos, como se somente houvesse pureza nas postulações do próprio Amoêdo.
O suporte financeiro e os apoios de que dispõe podem fazer com que sua “onda laranja” cresça, não a ponto de virar um tsunami, mas com ímpeto suficiente para fixá-lo entre o eleitorado mais refratário às esquerdas.
Gostei do texto com a exceção dessa passagem: “Amoêdo não é “o” liberalismo, mas uma versão conservadora do liberalismo. Nenhuma objeção a que concorra com essa bandeira, que faz falta no Brasil de corporações em que nos encontramos. Quer mais mercado e pouco Estado. Posicionado no terreno da democracia, expressa a direita civilizada, aberta ao diálogo e ao debate de ideias.” Não sei se Amoêdo é efetivamente democrata, porque seu programa parece ser a expansão e consolidação da plutocracia, logo, uma vaselina “democrática, civilizada, aberta ao diálogo e ao debate de ideias” para expropriar o povo de sua efetiva capacidade de exercer seu autogoverno, a democracia. Nada pode ser mais capitalista, corrupto e antidemocrático do que a pura e absoluta soberania do poder do dinheiro. E, no entanto, buscamos e deixamos o dinheiro nos amoêdos, digo, nos bancos.
Obrigado pelo comentário, Carlos. A questão ser ou não ser democrata passa por muitas camadas, não só pela economia. Há capitalistas que são democratas sinceros, e creio que o Amoêdo se inclui entre eles. Mas é uma discussão que precisa ser sempre feita e refeita, assim como a que considera as relações entre liberalismo e democracia, socialismo e democracia, que articulam sistemas de produção, formas de sociedade e escala de valores. Abraço
Bom dia!
Parabéns pela reflexão.
Abraços e tudo de bom
Valeu, Ozaí! Grande abraço