Eu teria muitas coisas para falar sobre Bruno Liberati, que faleceu em 26 de junho de 2020, aos 71 anos.
Nós nos conhecemos no comecinho da década de 1970, na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Eu estava no segundo ano do curso quando ele ingressou. Formou-se ali um grupo que se mantem em contato até hoje: Reginaldo Forti, Claudio Kahns, Vera Sá, Flávia Castro, Lúcio Flávio Pinto, Christina Borges. A turma incluía também Raul Mateos Castel, Vera Caldas, Leon Cakof, Oscar Faria, para citar os que me lembro de imediato. Era um grupo de pessoas excepcionais, numa época excepcional e numa faculdade que, beneficiada pelo fato de estar fora da USP, respirava contestação.
Bruno vinha da periferia de São Paulo, ralava para ganhar a vida. Logo se destacou pelo jeito desleixado, pela simpatia, pela tranquilidade e, claro, pelos desenhos que fazia o tempo todo. Em algum momento desse período, nosso grupo conquistou o Diretório Acadêmico da escola. Passamos a fazer política intensamente, marcando presença nas discussões curriculares, na competência dos professores, na qualidade das aulas. Elegemos representantes para a Congregação e criamos a revista Di…Fusão, que teve 5 números. Publiquei nela minhas primeiras resenhas. Bruno era o ilustrador da revista, que tinha a presença marcante de Lúcio e Reginaldo.
O falecimento de Bruno arrancou um pedaço importante de todos os que o conheceram. Em nosso grupo, foi um choque. Ele era nosso amigo artista, uma pessoa doce, tímida, gentil, afetuosa, que se mandou para o Rio de Janeiro após o curso, fazendo longa e vitoriosa carreira no Jornal do Brasil. Mesmo distante, ele esteve sempre por perto, vinha bastante a São Paulo, nos encontramos muitas vezes. A amizade não foi abalada e terminou por ser reforçada pela vida, que nos manteve próximos.
Lembro fácil de diversos episódios. Os dias na faculdade. Ele trabalhando na Ação Comunitária, junto com Reginaldo e Flávia. A foto em que seguro no colo seu primeiro filho, Pedro, do casamento com Barbara. Em dezembro de 1978, Bruno e uma amiga, Conceição Rodrigues, colheram um longo depoimento de Ferreira Gullar para a revista Temas de Ciências Humanas. A ideia e o roteiro foram dele. Como eu era uma espécie de editor da revista, fui ao Rio finalizar o depoimento. Fiquei 3 ou 4 dias trabalhando em seu apartamento, nas Laranjeiras. O texto final recebeu o título de “Vanguardismo e cultura popular no Brasil” e foi publicado no volume 5 da revista (1979). Praticamente selou nosso relacionamento. Nos anos seguintes, conversamos bastante sobre ele, unidos pela comum admiração que tínhamos por Gullar.
Mais tarde, quando a internet se fixou, eu e ele fizemos nossos blogs. O Liberatinews.blogspot era ótimo. Mostrava por inteiro o Liberati intelectual, que escrevia muito e bem, lia, estudava, era antenadíssimo com a movimentação cultural. Insaciável. Por volta de 2010 ou 2011, ingressou no mestrado em Comunicação Social na PUC-RJ, modo que encontrou de se manter ativo em termos teóricos.
Liberati estava além da charge e do cartum. Era um artista pleno, que dominava como poucos o desenho. Era fera no bico-de-pena. Culto e bem informado, fez coisas lindas. Em 1989, no Rio, uma galeria expôs 32 ilustrações selecionadas entre as mais de 5 mil que ele já havia publicado na imprensa. Na ocasião, Zuenir Ventura elogiou enfaticamente a versatilidade e o talento de Liberati, a facilidade com ele passava do surrealismo ao naturalismo, do figurativo ao abstracionismo, compondo uma obra autônoma e desconcertante. Suas ilustrações (milhares) sempre acrescentavam algo ao texto, falavam por si, orientavam e provocavam o leitor.
Quando de sua morte, a Associação Brasileira de Imprensa publicou extensa notícia, com depoimentos de vários amigos e colegas jornalistas. Copio alguns que me chamaram atenção.
Regina Zappa escreveu: “Bruno Liberati era criativo, de humor fino, desenhista de mão cheia, apaixonado pela criação. Reproduzia o mundo com olhar leve e generoso nos seus desenhos. Suas caricaturas revelavam em traços precisos, harmoniosos e sutilmente bem-humorados a personalidade de seus caricaturados. Mas nada era superficial com ele. Os mergulhos na vida e no conhecimento eram sempre profundos. Bruno era ser humano da melhor qualidade”.
Carlos Franco: “O legado que Liberati nos deixa para a perenidade é o discurso sensível, doce, dos seus traços. Expressões que revelam a vivacidade de um olhar agudo e profundo sobre o mundo”.
Ruth Martins: “O traço artístico do Liberati era múltiplo: leve, colorido, ingênuo ou engraçado; ácido, preciso, clássico. Seja como ilustrador, desenhista, caricaturista brilhante, chargista ou pintor, seu traço era inconfundível. Era do Bruno.
Claudius: “Liberati era uma pessoa querida por todos que o conheceram. Seu traço inconfundível era visto no Facebook em desenhos recuperados do baú da memória, com riqueza de detalhes. Sempre modesto, não parecia estar consciente de que era um dos grandes caricaturistas brasileiros”.
Aroeira: “Conheci o Bruno no JB. E nunca mais passei sem ele. Seja no caderno B, nas páginas do jornal, nas capas de livros, nos encontros da galera do desenho, nos esbarrões em vernissages e noites de autógrafos. Aquele traço elegante, aquele talhe fino, aquele sujeito tão gentil, suave e culto não mora mais aqui. Uma tristeza enorme.”
Por teimosia e retraimento, Bruno nunca quis fazer uma grande exposição e se recusava a inserir suas obras maravilhosas no mercado de arte. Acho que perdemos com isso. Como suas ilustrações estão espalhadas por diversos jornais, revistas, dentro e fora do Brasil, a descoberta delas não é fácil. Imagino que muitas outras coisas estão guardadas em seu baú.
Em 1995, Liberati publicou um livro pela Editora Revan: Era uma vez um Brasil. História espremida de Cabral a FHC. Foi um sucesso. A primeira edição esgotou. Para que o livro “não morresse num sebo”, ele reproduziu diversas partes em seu blog. Uma história do Brasil meio anárquica “contada em desenhos e textos furiosos”, dizia o site da editora. “Uma viagem que começa com uma incompetência náutica e termina na época da invenção do real quando FHC desce de uma nuvem para nos governar”. Para ele, era um jeito de falar de “um país que não deu certo”.
Eu adorava em particular suas caricaturas. Organizei no computador uma pasta com várias delas. A intenção era admirá-las com calma, divulgá-las, utilizá-las em meu blog. Todas são finas, geniais, sabem captar o personagem, sua biografia e personalidade, sua importância cultural.
Em 1985, quando eu morava em Roma, escrevi um texto sobre Gramsci para o JB. Ele foi ilustrado por Liberati, o que muito me emocionou. Foram duas páginas no Caderno B, com o desenho maravilhoso no meio. Anos depois, meu amigo me presenteou com o original, com direito a dedicatória carinhosa. Emoldurado, está em meu escritório.Gramsci voltou a ser desenhado outras vezes por ele. Mas aquela primeira ilustração, muito superior ao artigo, jamais deixou de me acompanhar.
Hoje, olho para a parede em que ela está pendurada e tropeço na tristeza e na melancolia.