Macron, a França e a União Europeia

Macron foge das rotulações ideológicas, mas suas propostas econômicas são liberais. Vangloria-se de incorporar “o melhor da esquerda, o melhor da direita e o melhor do centro”. Costuma se apresentar como “social-liberal”, dizendo-se disposto a reformar o sistema de proteção social francês sem alterar sua generosidade. Seu programa e seu posicionamento, porém, são confusos.

Eleito com boa margem de votos (66%) e alta taxa de abstenção (25%), Emmanuel Macron tomou posse como presidente da França no dia 14 de maio de 2017. Oitavo presidente da V República e o mais jovem político a ocupar o cargo desde Napoleão, governará o país durante os próximos cinco anos.

Como era de esperar, sua vitória foi saudada nos quatros cantos do mundo e interpretada como uma categórica valorização do “novo”, da União Europeia e da globalização, com a consequente perda de força do nacionalismo da extrema-direita e das resistências mais fundamentalistas de parte da esquerda. O declínio dos partidos tradicionais (socialistas e gaullistas, sobretudo) também está associado à ascensão de Macron, inesperada até meses atrás.

Macron contrapôs aos eurocéticos e aos anti-europeistas um programa em que defende o diálogo entre os países membros da UE, acompanhado de reformas de corte liberal voltadas para o Estado francês. Não se mostrou nem complacente com a situação atual da União, nem distante da cultura republicana cara à esquerda, na qual os temas fortes são o cidadão, a liberdade, a solidariedade e a igualdade. No discurso que proferiu logo após a proclamação do resultado, Macron disse que atuará para “diminuir as profundas divisões na França”, que resultaram em grandes pontuações para a extrema-direita e a extrema-esquerda. Afirmou reconhecer “as divisões na nossa nação, que levaram alguns a votar por partidos extremistas. Eu os respeito. Trabalharei para recriar a conexão entre a Europa e suas populações, entre Europa e cidadãos”.

Reiterou tal ênfase no discurso de posse, todo centrado no elogio de uma França forte, altiva e cooperativa. Falou em “devolver a confiança aos franceses”, dado que há décadas a França “duvida de si mesma. Sente-se ameaçada em sua cultura, em seu modelo social, em suas crenças profundas, duvida daquilo de que é feita”. Seu compromisso será agir como um presidente de todos os franceses, dedicado a proteger a sociedade, incentivar os que desejam criar, empreender e inovar, mas que também ajudará “os que têm menos, que são mais frágeis ou abalados pela vida, por meio da escola, da saúde, do trabalho, da solidariedade”. Será posto em prática tudo o que “contribuir para o fortalecimento e a prosperidade da França. O trabalho será liberado, as empresas serão apoiadas, a iniciativa será encorajada”, a cultura e a educação ocuparão o centro de tudo.

Igual destaque foi dado à dimensão internacional, ao papel da França no mundo e na Europa. Macron se apoia na ideia de que “o mundo e a Europa necessitam hoje da França”. Precisam daquilo que os franceses sempre lhes ensinaram: a audácia da liberdade, a exigência da igualdade, a disposição para a fraternidade”. De sua parte, a França necessita de uma Europa refundada, “pois ela nos protege e nos permite levar nossos valores ao mundo”. O compromisso aqui é globalista e europeísta: “Assumiremos todas as nossas responsabilidades para responder aos desafios do mundo. Somos todos interdependentes, somos todos vizinhos”. A imensa tarefa que se tem pela frente é “corrigir os excessos do mundo”, para o que se faz necessária uma Europa “mais eficaz, mais democrática, mais política, pois ela é o instrumento da nossa potência e da nossa soberania”.

Para relativizar e enquadrar melhor sua vitória, alguns pontos são emblemáticos.

 

Além do bipartidarismo

Dentre os efeitos da ascensão de Macron, o mais importante tem a ver com a dissolução do bipartidarismo de fato que prevalecia na França desde 1981. Socialistas e gaullistas (republicanos), que dominaram a cena política sem grandes contestações, foram eliminados de forma clara e mergulharam em nova fase, na qual esforços de recriação e reorganização se farão indispensáveis.

O PS, em particular, com a obtenção de 6,36% dos votos no primeiro turno, foi pulverizado pela própria crise interna e pela impopularidade do presidente François Hollande. O resultado medíocre foi recebido com preocupação pelos socialistas. Benoît Hamon, seu candidato, declarou logo após as eleições que o desempenho representa uma “derrota moral” da esquerda. Não há como saber que reação terá o partido no médio prazo, em que prazo conseguirá cauterizar suas feridas e se repor como força política de expressão.

A extrema-direita, por sua vez – a Frente Nacional de Marine Le Pen – não se revelou um cachorro morto. Cegou ao segundo turno mostrando força e capacidade para interpelar um eleitorado composto por pessoas que se sentem prejudicadas pelos rumos da globalização. Obteve 1/3 dos votos (34%, aproximadamente 10,5 milhões de votos), o que não é pouca coisa. Se considerarmos as abstenções, os votos nulos e o fato de que parcela dos sufrágios obtidos por Le Pen veio de setores do velho industrialismo, onde até ontem reinava a esquerda, pode-se dimensionar bem o tamanho do problema, numa situação em que a esquerda histórica – PS e PCF – não está no melhor da forma física e intelectual.

Muito da adesão do eleitorado a Macron derivou não tanto de uma aposta nas virtudes do candidato, mas da disposição de impedir que Le Pen chegasse à Presidência. Repetiu-se assim uma tática que já havia sido utilizada anteriormente. Tal fato não diminui necessariamente a força de Macron, mas certamente mostra um eleitorado mais defensivo que pró-ativo, o que levará o novo presidente a gastar energia para conquistar os recalcitrantes, parte dos quais estão na esquerda mais radical, que se recusou a escolher entre o extremismo racista e direitista de Le Pen e o liberalismo de Macron, que propõe a realização de reformas (trabalhista, previdenciária) que são interpretadas como redução de direitos e proteção social.

Seja como for, Macron tenderá a usar a seu favor duas predisposições que contagiam um expressivo número de franceses. Por um lado, a expectativa de que exista uma oferta política alternativa aos dois grandes partidos tradicionais. Por outro, a reiteração de que é preciso lutar contra a ascensão de discursos contrários à Europa e apoiar um “novo projeto europeu”. Neste último ponto, porém, o terreno é pantanoso, pois também é grande a expectativa social de que se redefinam as relações dos Estados europeus entre si e com as estruturas institucionais da União Europeia. Ao menos parte dos próprios eleitores de Macron votou contra o sistema e contra e as políticas liberais e fiscalistas da UE.

A França que Macron governará é uma sociedade dividida, na qual esquerda e direita não mais se mostram como polos típicos do conflito social, que foi ressignificado. Questões associadas a nacionalismo vs. globalismo, euro vs. moeda nacional, UE vs. Estados nacionais soberanos, gênero e identidade, ganharam destaque e alteraram o modo como os próprios temas sociais e econômicos aparecem na agenda. Tais temas estão hoje “sobredeterminados”.

 

Social-liberalismo

Macron foge das rotulações ideológicas, mas suas propostas econômicas são liberais. Vangloria-se de incorporar “o melhor da esquerda, o melhor da direita e o melhor do centro”. Costuma se apresentar como “social-liberal”, dizendo-se disposto a reformar o sistema de proteção social francês sem alterar sua generosidade. Seu programa e seu posicionamento, porém, são confusos.

Várias de suas propostas eleitorais são (neo) liberais, como é o caso da redução dos impostos e da eliminação de 120 mil empregos públicos. Ele se dispõe a manter o déficit fiscal abaixo do limite de 3% do PIB fixado pela UE, além de “flexibilizar” o mercado de trabalho, ou seja, em poucas palavras, desregular o mercado e facilitar as demissões de trabalhadores. Mas, ao mesmo tempo, comprometeu-se a manter o investimento social e a proteger os mais pobres, seguindo um modelo que se aproxima do que se costuma chamar de flexiseguridade, sistema empregado nos países nórdicos e que concebe as políticas de regulação como derivando de uma combinação de flexibilidade do mercado de trabalho, seguridade social e emprego. Se sua presidência conseguir criar empregos estáveis, o sistema poderá dar certo. O desafio está precisamente aí.

Tudo somado, com as eleições configurou-se no país uma polarização ainda mais clara entre uma França pró-globalização, mais bem sucedida e liberal, e uma França mais nacionalista, refratária à imigração e que vê o terrorismo como ameaça a ser combatida com um Estado forte.

As eleições parlamentares, a serem realizadas em junho, fechará o quadro e mostrará as condições reais que terá Macron para governar a França. Pode ser que seu novo partido – agora denominado Republicanos em Marcha (REM) – consiga formar maioria consistente ou boas coalizões. Hoje é impossível cravar qualquer previsão. O que dá para prognosticar é que as tendências que impulsionaram Macron continuarão vivas, pois nascem das circunstâncias estruturais que estão a modificar a sociedade francesa e refletem o declínio das formações partidárias que organizaram a política no país desde a Segunda Guerra. A rejeição aos partidos tradicionais deu fôlego eleitoral a Macron e muito provavelmente se manifestará nas eleições parlamentares e condicionará seu próprio governo.

De algum modo, neste particular, repôs-se com clareza a questão que tem aparecido em todas as situações políticas do mundo atual: como ultrapassar a resiliência e a resistência da “velha política”, com suas práticas e seus resultados que não parecem mais obter consensos sociais? Não será certamente qualquer ideia de “nova política” que terá força para responder ao dilema, mas parece inevitável que enquanto não se resolver a equação muitos rostos novos tenderão a ocupar o espaço e a fazer promessas renovadoras aos eleitores. Trump de algum modo foi isso. Macron também. Mas entre um e outro as diferenças são abissais.

 

Habermas e União Europeia

Em termos imediatos, a vitória de Macron faz com que as atenções se voltem para a UE e particularmente para as oportunidades que se abrem para a reposição de uma aliança entre França e Alemanha, que, se confirmada, espalhará efeitos variados em cada um dos países e na União como um todo. Em setembro haverá eleições na Alemanha, e Merkel só terá a ganhar com uma UE revigorada e tanto quanto possível “pacificada”.

Não foi por outro motivo que, em março passado, já com a constatação de que as chances de vitória do novo presidente francês eram altas, a Hertie School of Governance, de Berlim, promoveu um debate entre Macron e Sigmar Gabriel, ministro social-democrata alemão das Relações Exteriores, para examinar o futuro da Europa. Ambos os políticos são conhecidos pelo europeísmo e pela ênfase que depositam numa União apoiada sobre uma combinação de reformas e novos investimentos.

Para dar a devida qualificação ao encontro, pediu-se a Jürgen Habermas que fizesse uma rápida introdução (leia a tradução da íntegra aqui). Nela, o filósofo elogiou o esforço de Macron e Gabriel para “criar um espaço de manobra em nível europeu para uma política econômica flexível que possa superar o principal obstáculo que impede uma mais estreita cooperação entre os Estados membros – em particular as claras diferenças nos níveis das taxas de crescimento, de desemprego e de dívida pública, sobretudo entre as economias dos países setentrionais e meridionais que compõem uma união monetária que deve fazer respeitar uma convergência até mesmo quando os países envolvidos se distanciam –, cuja coesão política vai sendo erodida como consequência de diferenças persistentes, com efeitos crescentes, nas obrigações econômicas”.  Criticou com firmeza a imposição do atual regime de austeridade, cujos efeitos produzem assimetrias, “agressões recíprocas e uma profunda dilaceração da eurozona”. E salientou o limite das visões que insistem em propor uma “Europa de diferentes velocidades”, chamando atenção para o significado da prevalência da “solidariedade”, a dificuldade de se enfrentar o problema do terrorismo e a crise migratória.

Sua conclusão é um misto de realismo e otimismo:

“A institucionalização de uma cooperação mais estreita é o que acima de tudo torna possível exercer influência democrática sobre a proliferação espontânea das redes globais em todas as direções, já que a política é o único meio em condições de produzir medidas bem pensadas para dar forma aos fundamentos da nossa vida social. Diversamente daquilo que sugerem os slogans da Brexit, não retomaremos o controle sobre tais fundamentos se nos refugiarmos nas fortalezas nacionais. Ao contrário, a política deve manter sintonia com a globalização que ela própria pôs em movimento. Levando em consideração os limites do sistema de mercados não regulados e a crescente interdependência funcional de uma sociedade mundial sempre mais integrada, mas também as espetaculares possibilidades que criamos – por exemplo, de uma ainda não padronizada comunicação digital ou de novos procedimentos para otimizar o organismo humano –, devemos expandir os espaços para uma possível formação democrática da vontade pública, para a iniciativa política e para a regulamentação legal que ultrapasse as fronteiras nacionais”.

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