Houve uma época em que os professores universitários não tinham Currículo Lattes.
O corpo docente de então era constituído por intelectuais que zelavam por sua imagem, mas não viviam a preencher formulários para demonstrar sua “produtividade”. Formavam jovens, direcionavam as faculdades, faziam pesquisas, organizavam e gerenciavam grupos de estudiosos. Havia neles certa despreocupação com concursos e carreiras, ocorreriam com o passar do tempo, sustentadas por contribuições efetivas, independentes da exibição de provas curriculares, índices de publicação ou participação em cursos, seminários e conferências.
Os professores desta época longínqua valiam pelo que eram, pelo que faziam de fato em prol da comunidade acadêmica a que pertenciam. Eram mestres, mais que professores.
Poderíamos citar uma legião inteira de intelectuais que percorreram esta trajetória. Estiveram presentes em todas as áreas de ensino e pesquisa, nelas deixando sua marca. Construiram a universidade brasileira.
Um deles, em particular, faleceu no dia 29 de dezembro de 2023. José Aluysio Reis de Andrade, nascido em 1929, é um exemplo emblemático do que acabo de afirmar. Ele veio das antigas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras que se distribuíram por algumas cidades do interior de São Paulo. No final de 1976, aquelas unidades de ensino foram integradas à UNESP.
José Aluysio tornou-se professor titular por tempo de serviço. Era uma mente enciclopédica, um filósofo sofisticado, dedicado muito mais a pensar, ensinar e organizar do que a pesquisar ou publicar. Com um espírito aberto e conciliador, cultor da melhor tradição mineira, tornou-se uma referência para os docentes mais jovens, contribuindo de forma decisiva para que se assimilasse o difícil processo de criação da UNESP, que transcorria em plena ditadura militar.
Quando ingressei na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara em 1976 (pouco antes da constituição da UNESP), ele me recebeu e me guiou pelos meandros da vida acadêmica. Não foi o único, por certo, pois a faculdade tinha um bom número de mestres. Mas Aluysio me ajudou demais. Ensinou-me a organizar cursos, a ensinar, a compreender estatutos e regimentos, a valorizar a gestão universitária. Fez isso sustentado por sua sabedoria, gentileza, cultura, educação, por sua amizade sincera e desprendida.
A partir dos anos 1980-90, mestres como José Aluysio foram se tornando exceções, engolidas pelo corrosivo processo de afirmação burocrática do produtivismo. O que se passou a exigir, nas faculdades, foi a exibição regular de indicadores de produtividade. A proliferação dos programas de pós-graduação acentuou a tendência e de repente, num piscar de olhos, estavam todos a correr atrás do preenchimento compulsivo do Currículo Lattes, documento que se tornou parâmetro para a avaliação da qualidade dos docentes.
Foi inevitável, e até certo ponto compreensível: a universidade se massificou e se diferenciou bastante, fragmentando-se em muitas áreas de ensino e pesquisa. Ingressou na mesma corrente “mercantil” que se tornou dominante nas sociedades modernas e hipermodernas dos dias atuais. O mérito ficou na dependência do quanto se publica, do quanto se comparece a simpósios e congressos, dos cargos que se ocupa e dos concursos que se vence. Os professores descolaram-se das instituições, servindo-se delas, em muitos casos, para fazer carreira e se destacar. O coletivo (a universitas) perdeu força, em benefício dos indivíduos. Algo se perdeu nessa transfiguração, que segue sem muitos questionamentos.
Seriam muitas as coisas a serem destacadas nesse processo. Nem tudo nele tem sido negativo. A lamentar que as unidades acadêmicas deixaram ser espaços de convivência e compartilhamento de ideias. Converteram-se em ambientes competitivos, carregados de disputas e desentendimentos. E o fato de que mestres como José Aluysio não possam mais voltar a surgir nelas deixa um vazio que será dificilmente preenchido.
Com matizes um pouco diferentes, mas de acordo com a substância do que você escreve agora, foi o que escrevi, no fim de minha gestão como reitor, no longo artigo “A Universidade no limiar do século XXI”. Parabéns, Marco Aurélio!
Muito obrigado, prezado prof. Antonio Manoel, um dos grandes reitores da Unesp. Nestes temas, e em muitos outros, temos várias concordâncias. Grande abraço