Numa época em que as modas intelectuais passam a jato e se desfazem com rapidez, é motivo de reflexão cuidadosa a impressionante vitalidade do pensamento de Antonio Gramsci, que continua hoje – auxiliando a manter vivo o poder de sedução do próprio marxismo — a interpelar intelectuais de várias partes do mundo. Gramsci tornou-se referência em áreas de pesquisa de que o marxismo nem sequer cogitava em suas diferentes fases: os estudos coloniais, o desenvolvimento tecnológico, as relações internacionais, o feminismo e os estudos de gênero, a crítica literária.
Uma hipótese para compreender isso pode ser encontrada tanto no modo gramsciano de ser marxista (um marxista pouco ortodoxo), quanto na capacidade que teve de se debruçar sobre um amplo leque de temas e problemas que, captados quase que em estado nascente, iriam se mostrar abertos à evolução da modernidade política no século XX.
Outra hipótese é que a filosofia de Gramsci é, em alguma medida, “plástica”: pode ser utilizada para vários exercícios intelectuais sem que se tenha, necessariamente, de assimilar e praticar todo o arsenal conceitual do marxismo tradicional. Dessa perspectiva, Gramsci foi muito além de Marx, seja por ter vivido em um momento de reorganização do capitalismo e dos Estados nacionais, seja por ter “escapado” (passou boa parte da vida adulta no cárcere) das inflexões mais problemáticas dos marxistas e socialistas de sua época.
Dois livros publicados em 2025 no Brasil mantêm vivo o legado de Gramsci.
O livro da filósofa e historiadora italiana Francesca Izzo – O moderno príncipe de Gramsci: Cosmopolitismo e Estado nacional nos Cadernos do Cárcere (Editora Unicamp) — parte do diálogo e da reflexão de Gramsci sobre a história italiana, exercício do qual nasceram vários de seus conceitos fundamentais, em particular sua elaboração da noção de intelectuais e hegemonia. A pesquisa também envereda pela história do mundo nas três primeiras décadas do século XX, época de profundas transformações na estrutura do capitalismo e na morfologia das lutas sociais. Com essa segunda inflexão, o livro nos leva ao Gramsci revolucionário, que, nos Cadernos do Cárcere, irá empreender um verdadeiro combate pela renovação do marxismo, confrontando-se muitas vezes com a resistência do pensamento prevalecente entre socialistas e comunistas do período.
A carga renovadora da elaboração teórica de Gramsci se apoiará, por um lado, no reconhecimento de que algo estava a sacudir os Estados capitalistas, abalados pela Primeira Guerra Mundial e, depois, pela crise de 1929. Nesse ponto, ele destacará que a mundialização da economia se fazia sem que os Estados nacionais se reformulassem e se abrissem para novas modalidades de organização. Por outro lado, Gramsci presenciará um processo de “sublevação” social pela direita, hostil ao liberalismo predominante. O fascismo italiano e o nazismo na Alemanha catalizarão esse processo. Pensando em termos de dissolução das bases sociais do fascismo e da necessidade de articular diversas formas de aliança – entre comunistas, socialistas e liberais, entre operários e camponeses, entre o norte industrial e o universo meridional, entre intelectuais e povo – Gramsci destacará que, no médio e longo prazo, no contexto de uma complexa “revolução passiva” em escala global, o avanço passaria por um novo tipo de “cosmopolitismo”, não mais assentado no território. Esse o caminho pelo qual seria possível cogitar de uma “unificação do gênero humano”.
Ao enfatizar esse ponto, Francesca Izzo ressalta a atualidade de Gramsci. O “cosmopolitismo” gramsciano é amplo e democrático, passa ao largo das incrustações territoriais nacionalistas, étnicas e religiosas que aprisionam as populações globais e impossibilitam a captura do Estado pela sociedade civil em perspectiva global.
Já o livro de Gianni Fresu – Questões gramscianas: da interpretação à transformação do mundo (Boitempo) – mergulha nas origens de Gramsci, sua Sardenha natal, na qual começará a se por o problema da unificação italiana e das fraturas socioculturais que a acompanharão. A atenção de Gramsci irá se depositar em temas que revelarão a dimensão das desigualdades regionais italianas, levando-o a falar em “colonialismo interno”, barreira para a “emancipação dos subalternos”, em particular nas circunstâncias dos grupos e classes sociais sardas. O principal interesse de Fresu, assim, é mostrar a matriz sarda do pensamento gramsciano, o quanto seu vínculo biográfico ajudou a modelar o modo como, mais tarde, irá pensar a história italiana e sua especificidade. Donde o primeiro capítulo, o principal do livro, estar dedicado às “raízes sardas de um pensamento universal”.

Fresu dá o devido destaque ao fato de que “a difusão das categorias gramscianas não é motivada apenas por razões de mera erudição, mas emerge antes de tudo a partir da necessidade de compreensão e transformação das condições de exploração e dominação impostas pelo Ocidente”. Como teórico e militante político, Gramsci quer ser parte da vida dos subalternos. Mas não perde de vista o interesse internacional, pois compreende bem, desde cedo, as articulações entre o global e o local. Para Fresu, é por essa trilha que se pode compreender que o “mergulho analítico” de Gramsci na história sarda possibilitou a que ele – “teórico da hegemonia” e da “revolução no Ocidente” – tenha se tornado um autor “bastante precioso para os povos do Sul do planeta”.
O laboratório sardo, além do mais, servirá para Gramsci perceber claramente a relevância das alianças de classe para a superação do bloco agrário e a ativação progressista dos intelectuais. Era assim que ele imaginava “eliminar os resíduos de mentalidade corporativa da classe operária”, de modo a dar impulso à formação de um novo bloco histórico.
Gramsci permanece atual por ser um pensador aberto a múltiplas interpretações. Hoje, ele navega em um oceano regressista, no qual a “vitória do socialismo” já não pode ser proclamada ou projetada. Socialistas e comunistas como Gramsci continuarão a nascer e crescer, com outros desafios pela frente. O pensamento crítico permanecerá essencial, uma chave para que se abram as portas da realidade e se vejam os novos processos que estão a se formar.
Gramsci foi um intérprete de seu tempo e um marxista original. Suas categorias não podem permanecer largadas em uma dimensão abstratas, empregadas com um vezo academicista aleatório, separadas das lutas políticas contemporâneas.




