O que é um intelectual? Quem é ele hoje? Podemos defini-lo, sem mais nem menos? São perguntas que muitos fazem. É possível alcançar um entendimento único? Em Legisladores e intérpretes, Zigmunt Bauman observou que os intelectuais se autodefinem e, ao fazerem isso, tornam irrelevantes as definições a respeito deles.
A história tem mantido os intelectuais no centro das atenções. Conforme a época, eles foram vistos como “homens de letras” ou “das Luzes”, pensadores, formuladores de ideias, artistas com particular senso estético. Aos poucos, incorporaram-se os cientistas e os especialistas. O leque se ampliou progressivamente. A partir de Marx e Engels, os intelectuais foram projetados no universo das lutas sociais. Na terceira década do século XX, Gramsci os veria como organizadores das classes e dos blocos históricos, personagens centrais dos partidos políticos de esquerda, entendidos por ele como “intelectuais coletivos”.
Em todos esses casos, os intelectuais foram vistos (e se viram) como atores comprometidos, eticamente fiéis a determinados grupos (classes, partidos), ideias e valores, além, evidentemente, de terem a “missão” de encontrar e expor a “verdade”,
Na metáfora de Bauman, essa foi a época dos “legisladores”. A da modernidade sólida. A metáfora servia para designar o conjunto dos “intelectuais” que, convocados ou não pelo poder político, estavam convencidos da sua relevância para definir e impor normas para o restante da sociedade. Eles seriam superiores à gente comum, funcionando como propulsores da aceitação popular dos mecanismos de controle social.
A conversão da modernidade em hipermodernidade – ou em “modernidade líquida”, radicalizada, despida de utopias, alavancada pela revolução tecnológica e pela globalização capitalista – reformulou tanto a ideia que se fazia do intelectual, como a própria figura do intelectual. Ele se especializou bastante. Dada a redução das possibilidades de controles rígidos, o intelectual tornou-se um “intérprete”. Passou a ter que buscar performance e visibilidade, não necessariamente por meio de uma atuação mais vigorosa da esfera pública, mas sim mediante a exploração de seus próprios ambientes de atuação. Publicar, escrever livros, participar de congressos e seminários, assumir encargos administrativos, fazer conferências foram se tornando atividades indispensáveis, que alteraram em profundidade o papel do intelectual.
Claro, é preciso complicar o argumento. O que foi dito acima talvez valha particularmente para os intelectuais acadêmicos, professores pesquisadores universitários. Se, no entanto, privilegiarmos a dimensão da “concorrência” e da ocupação de espaços midiáticos, o argumento também se aplica a cineastas, artistas plásticos, escritores em geral, músicos, estrelas da televisão e jornalistas. Forçando um pouco a barra, chegaríamos aos youtubers dos dias atuais. Todos precisam construir suas imagens, lutar por audiência e seguidores.

Intelectuais no plural: reconfigurações da sociologia dos intelectuais (Ateliê de Humanidades, 2025), organizado pelos cientistas sociais Carlos Benedito Martins e Felipe Maia, nos ajuda a compreender esse complexo quadro. O livro é uma coletânea de artigos, o que privilegia a composição de um rico leque temático e fornece uma visão abrangente da discussão que se faz sobre os intelectuais e suas transformações na hipermodernidade.
Os artigos incluídos no livro não se ocupam particularmente da história dos intelectuais ou dos diferentes papéis por eles assumidos ao longo do tempo. O objetivo é revisitar e impulsionar a sociologia dos intelectuais, área estratégica nos estudos sociais, mesmo quando confundida com as pesquisas sobre pensamento político e social.
A área é estratégica porque os intelectuais não desapareceram, embora tenham assumido diversas configurações. A “esfera pública” composta nas primeiras décadas do século XXI preserva os intelectuais como personagens importantes. Não tanto como indivíduos diferenciados e cercados de prestígio, mas como agregados de intérpretes da vida e formuladores. Com as transformações do capitalismo e a emergência da hipermodernidade, ficou em xeque a figura tradicional do intelectual, forjada durante o século XX. O intelectual deixou progressivamente de ser visto como um “pensador geral”, um “crítico do poder”, um propositor de ideias abrangentes. Aos poucos, até mesmo os grandes intelectuais foram perdendo brilho e prestígio, em benefício de intelectuais mais especializados, concentrados em pesquisas mais circunscritas e donos de saberes parciais. Artigos tornaram-se mais importantes do que livros, em particular nas Humanidades.
Ocorre que as condições socioculturais modeladas pela midiatização social hipermoderna impulsionaram o surgimento de intelectuais “não devidamente reconhecidos”, em especial de mulheres, negros e oriundos de regiões periféricas, como assinalam os organizadores do livro. Tal proliferação de novas figuras intelectuais reconfigura o espaço público, enriquecendo os processos de produção de cultura e conhecimento.
Um dos pontos mais interessantes do livro está na ênfase que vários autores dão à atuação “performativa” dos intelectuais. Abre-se, assim, caminho para aquilo que Gil Eyal e Larissa Buchholz chamam de “sociologia das intervenções”, na qual o intelectual deixa de ser visto como um tipo social específico e sim como pessoas capazes de fazer uma intervenção pública. Na mesma direção vai Jeffrey Alexander, no texto “Intelectuais dramáticos, elementos de performance”, no qual se dá destaque aos “criadores de ideias importantes que se tornam persuasivos na cena social”. É uma ênfase que esclarece importantes dimensões da atuação do intelectual atualmente.
Como os espaços de circulação cultural se ampliaram, tornou-se inevitável que os produtores de cultura – reconhecidos ou não – tenham de dedicar atenção ao desempenho, seja publicando livros e artigos, dando aulas e conferências presenciais, seja sobretudo explorando as múltiplas possibilidades oferecidas pelas redes sociais.
Um problema que resta sem equacionamento cabal é o de avaliar em que medida a proliferação de “intelectuais interventores”, que se remetem a grupos específicos, não termina por dificultar o surgimento de um “centro organizador abrangente”, que se remeta ao conjunto da população. Sem isso, as ideias ficam soltas no espaço, alcançando segmento reduzidos de pessoas. O espaço público fica, assim, simultaneamente mais rico e mais fragmentado.
A sociologia dos intelectuais pode nos auxiliar a compreender e resolver esse problema. Os artigos reunidos em Intelectuais no Plural são uma contribuição nessa direção.




