Predadores urbanos

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Em vez de disputas estéreis e superlativas, candidatos deveriam apresentar ideias para fazer São Paulo ganhar mais civilidade

Ano eleitoral, foco nas cidades. Estarão os candidatos preparados para oferecer propostas políticas concentradas no viver urbano, na valorização das cidades como local de habitação, trabalho e convivência?

Há coisas que conspiram contra isso. O baixo nível político das candidaturas é uma delas, tendência que tem se reiterado ao longo dos anos e afeta prefeitos e vereadores. Vale para todos os municípios, incluídas as grandes metrópoles como São Paulo ou Rio de Janeiro. É um retrato claro da qualidade dos agentes políticos nacionais, que ainda não conseguiram se atualizar e não sabem dialogar adequadamente com os cidadãos.

A participação cívica é um ponto problemático. Não há propriamente, da parte dos cidadãos, um esforço organizado para “conquistar” as cidades. Nos anos 1980, quando avançava a redemocratização, houve muitas associações de moradores que atuaram com vigor. Hoje, não se vê algo parecido. O associativismo se concentra mais nas periferias, onde cumprem um importante papel. Nos bairros de classe média prevalecem o desinteresse, a acomodação e a transferência de responsabilidades, que de resto os gestores não assumem.

A pandemia condicionará fortemente o processo eleitoral e mesmo a ida às urnas. Pode ser que muitos cidadãos deixem de comparecer aos colégios de votação. Ainda que sem adesão plena e com um viés de progressivo relaxamento, a ideia de “ficar em casa” se disseminou, especialmente entre as camadas sociais que usufruem de renda e condições de trabalho à distância. É um contingente enorme.

A pandemia empurrou os cidadãos para dentro de casa. Seus efeitos serão sentidos por muito tempo. Teremos de prestar mais atenção ao que nos cerca, tomar precauções permanentes, ter mais cuidado com os equipamentos coletivos, de playgrounds a elevadores, com os funcionários da portaria, da limpeza, do delivery, com os mais idosos. A covid-19 está nos obrigando a adotar novas atitudes. Não se sabe se elas se fixarão. Mudanças do tipo costumam ser lentas. Mas algo está acontecendo.

Com a valorização do “estar em casa”, os espaços residenciais tornaram-se áreas de refúgio e proteção. O distanciamento e o cuidado doméstico promoveram uma guinada autorreferenciada: “nós e nossa casa” virou um mantra dos tempos pandêmicos. Por um lado, isso embaçou o foco na cidade, mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, levou a que se percebesse melhor a dimensão urbana coletiva. A diminuição do tráfego de veículos reduziu a poluição, a paisagem ficou mais evidente, para o bem e para o mal. Ruídos e detalhes não notados antes vieram à tona. Tornou-se mais claro quanto as cidades são mal cuidadas, quanto carecem de  espírito cívico, boas políticas públicas, respeito e regulação.

Em São Paulo, capital de tantos contrastes e problemas, os predadores urbanos ganharam visibilidade e transparência. Cidadãos desleixados passaram a ser denunciados e alertados. Aumentou a vigilância sobre os empreendimentos comerciais que se comportam como donos do mundo, alheios ao espaço público e à vizinhança. O barulho, a sujeira e a poluição por eles produzidos tornaram-se incômodos.

Os maus empresários formam um cortejo imenso. Vão de laboratórios de análises clínicas a bancas de jornais, bares, restaurantes e padarias. São empreendimentos que loteiam a cidade e pouco se preocupam com a manutenção de suas calçadas, de sua aparelhagem de refrigeração, de seus estacionamentos.

A “casa de pães Le Blé”, por exemplo, inaugurou uma unidade no bairro de Higienópolis no final de 2019. Ocupou um imóvel comercial – um monstrengo arquitetônico e urbanístico, repleto de irregularidades – entre dois edifícios residenciais, um deles tombado pelo patrimônio histórico. Sem qualquer cuidado ou cerimônia, instalou enormes respiradores externos, que agridem a paisagem e fazem ruído incessante.

Os moradores reclamaram, buscaram interferir e ponderar, mas a resposta foi sempre a mesma: “estamos fazendo o melhor possível”. Com o tempo, o cansaço se impôs. O isolamento durante a pandemia trouxe os problemas de volta, amplificados.

Em ano eleitoral, abre-se uma oportunidade para que as cidades comecem a ser repensadas. Ao lado dos efeitos da pandemia, há irregularidades o tempo todo, descuido e incúria. Ao longo da última década e meia, a cidade de São Paulo foi objeto de muitas promessas eleitorais e de diversos planos de “embelezamento” e zeladoria. Não houve prefeito que deixasse de anunciar projetos para cuidar da cidade. Vereadores discursaram, aprovaram um Plano Diretor com boas ideias. Pouca coisa saiu do papel.

Faltam políticas ambientais que regulem, corrijam, protejam, fiscalizem, promovam. As instituições a isso dedicadas são inoperantes. Uma cidade como São Paulo é um peso-pesado de desigualdade, tensão e mau cuidado, um espaço em que é difícil viver, o custo é altíssimo e a precariedade social é enorme. Como informou a Coluna do Estadão (14/9), a “pauta verde” não aparece nas campanhas políticas municipais. “No momento em que o debate ambiental e sustentável cresce no mundo e pressiona o Brasil, a pauta verde está fora das prioridades da maior parte dos candidatos nas eleições deste ano”. A pandemia e a recessão econômica intensificaram a preocupação com problemas mais imediatos, como saúde, emprego e diminuição da renda.

Cidadãos, candidatos e partidos não têm sido capazes de dar prioridade a uma agenda de sustentabilidade. Concentram-se numa visão “desenvolvimentista” do desenvolvimento, com pouca atenção para questões associadas a aquecimento global, mudanças climáticas, saneamento básico e poluição ambiental.  Não compreendem nem sequer a responsabilidade e as possibilidades de atuação das esferas locais de governo.

É um estranhamento que fará com que as cidades brasileiras fiquem à deriva, sendo governadas sem as devidas inflexões ambientalistas e sem uma política urbana consistente.

Particularmente em São Paulo, há um leque de temas que não entram no debate eleitoral. Propostas já deveriam estar sendo apresentadas, por exemplo, para facilitar deslocamentos, revigorar áreas públicas, discutir o desenho dos edifícios residenciais, a ocupação do solo. Além do combate às várias iniquidades sociais, a vida digital democrática exige que se atente para a ampliação do conforto, a criação de facilidades cotidianas, a participação dos cidadãos e o aperfeiçoamento dos mecanismos de apuração e controle dos crimes ambientais.

Em vez de disputas estéreis, superlativas (em São Paulo, há 14 candidatos a prefeito!), de manobras para bloquear ou desgastar adversários, os candidatos deveriam apresentar ideias para fazer com que a cidade se encontre com o futuro e se torne mais amigável, civilizada, justa e solidária. Isso, até agora, não apareceu.

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Britto
4 anos atrás

Excelente análise. Encarar o drama de São Paulo não é tarefa para uma pessoa. É para uma equipe bem estruturada, que pense antes as propostas e alternativas de ação, e entre para trabalhar juntos ao vencer, com garra e vontade. Uma pessoa isolada é quase uma comédia, não fosse uma tragédia. E a coisa caminha para isso, com os partidos esfacelados, vivendo praticamente de um nome – o nome do cacique da hora: Boulos, Tatto, Russomano, França, Covas, etc. Todos caciques, sem índios, e principalmente sem pajés para fazer a mágica… Como acreditar?

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