Quando a ficção ilumina 1964

Em seu novo romance, João Batista de Andrade mostra-se por inteiro como escritor e ilumina a história, nos ajudando a pensar

Li o livro de um só fôlego. Fui sendo fisgado, me deixando levar pelas tramas que nele se entrecruzam, impulsionadas pela lapidação psicológica dos personagens.

O autor é um craque, sabe usar as palavras e cativar o leitor. As aventuras e desventuras que nos oferece fazem pensar, refletir, reconstroem um passado que está tão longe e tão perto. Os idos de 1964 (do pré e do imediatamente pós) parecem não sair jamais de cena. São incensados por uns como se lá houvesse havido uma “revolução saneadora”, que teimam em tentar repetir anos afora. Outros, que formam a maioria esmagadora das pessoas lúcidas e sensíveis, sabem que nada disso ocorreu. O que houve foi o desmonte violento de um projeto de nação que, por mais imperfeito que fosse (e era, a meu ver), carregava consigo muitos sonhos e esperanças, além de uma variedade enorme de ilusões e fantasias. Fechou-se uma etapa.

No correr das seis décadas que nos separam daquela época, não houve momento em que o golpe e a ditadura de 64 tivessem sido arquivados. Continuaram a latejar, a nos indagar, a pedir explicações, a nos assustar e desafiar. Teriam o condão de se repetir? Suas determinações continuam em alguma medida vivas: a miséria, a pobreza, a desigualdade, a dependência, a dificuldade de encontrar um caminho que articule progresso material, justiça social e democracia.

1964, uma bomba na escuridão acaba de ser publicado. Pode ser adquirido em edição digital (kindle book). Nele, João Batista de Andrade mostra porque não é somente um cineasta premiado e um ativista da política cultural democrática. A cada romance seu, mostra que nasceu e cresceu como escritor.

Os capítulos do novo livro foram escritos no calor da hora, ali nos idos de 1964, que João viveu com intensidade. São textos que ele recuperou de um baú em que guardava anotações antigas, material inédito, esboços, reminiscências. E que, nas suas palavras, lhe possibilitaram compor “uma ficção construída a partir de histórias verdadeiras, histórias de amigos ou conhecidos, vividas durante o período abarcado pelo romance, e também a partir da minha própria vivência como estudante e ativo militante de esquerda, na época”.

Não são memórias, embora nos ajudem a entender muita coisa do escritor e da época. São textos de ficção, com personagens carregados de dramas, dúvidas e contradições, que interagem com uma realidade político-social em que faltava clareza e na qual o futuro estava mais nas construções imagéticas do que na realidade viva da história. Tempos confusos, efervescentes, que produziam pessoas confusas e efervescentes. Como os personagens de João Batista.

O romance não se concentra nos fatos políticos, nas razões do golpe ou na conduta e nas motivações de seus articuladores. Seu foco é a “alma” dos personagens, seus dilemas e maneiras de sentir os fatos, interpretá-los, viver a vida, lidar com o medo e o horror onipresentes. Deseja vasculhar a história dos primeiros anos Sessenta indo ao âmago daqueles que neles se movimentavam.

Como prova de que o cineasta e o escritor abraçaram-se e se completaram ao longo do tempo, as imagens do romance se entrelaçam como se fosse roteiro de um filme. O leitor pode vê-las por inteiro, ouvi-las, ainda que sejam tão somente palavras escritas e emoções.

Os idos de 64 foram um período de demolição, no qual se destruíram muitos dos sonhos de uma geração. Não representaram um mero soluço histórico, pois se incorporam à história e a condicionaram. Redefiniram muita coisa na cultura brasileira, no modo de pensar a política e de governar. Falam conosco ainda hoje. Ensinaram-nos caminhos e armadilhas, revelaram quem são e onde se ocultam os adversários a serem enfrentados, bem como o modo como podem ser contidos e derrotados. Por vias tortas, impulsionaram a formatação de outro país, com novos atores e novas circunstâncias, mas com muitos dos mesmos problemas de antes.

João Batista de Andrade sabe disso. Escreveu: “1964 – Uma Bomba na Escuridão é uma ficção vivencial. É o retrato dos fatos, do desespero da minha geração diante da tragédia do Golpe Militar. É um relato de vivências diante do desdobrar da história, de momentos, de muitas dúvidas, de muito medo. É um sentimento de adeus ao passado, de um doloroso adeus ao futuro e, eventualmente, à vida. É o medo e o imenso desconforto com o presente.”.

Seu romance ilumina.

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