Tragédia e limites do “iliberalismo”

Caciporé Torres. Serigrafia
Caciporé Torres. Serigrafia
Governos iliberais desprezam a inteligência e a cultura, atraem colaboradores que aceitam, sem dilemas morais, o papel de subalternos silentes do chefe.

De uns anos para cá, a palavra “iliberalismo” tem ocupado um lugar de destaque nas explicações do mundo em que vivemos.

Boa parte dessa atenção decorre da multiplicação de governos que giram em torno de autocratas populistas – mais violentos e autoritários ou menos –, que menosprezam regras, hábitos e procedimentos dos sistemas democráticos. São governantes que chegaram ao poder valendo-se das instituições democráticas (eleições, liberdade de expressão e associação, separação dos poderes) e que governam minando aquilo de que se beneficiaram. Organizam sistemas antidemocráticos paralelos a partir dos quais atacam os sistemas instituídos, abalam o que está estabelecido, reprimem adversários e mobilizam seguidores, sempre que possível fanatizando-os. São, no fundo, não-liberais e não-democráticos, muitos abertamente antirrepublicanos.

Tais governos governam muito pouco, ou até mesmo não governam, deixando as coisas do Estado em modo inercial. O objetivo é converter o governo numa instância de mando e poder pessoal. Atos de governo não seguem planos técnicos e são quase sempre apresentados como derivados da generosidade e da largueza de visão do chefe, cuja vontade – em muitos casos marcada pela impulsividade e pelo improviso – é tratada como se contivesse um mapa seguro para a “verdade”. A sustentação é obtida por métodos conhecidos: negociações espúrias, produção incessante de desinformação, criação de inimigos imaginários (o comunismo, o globalismo, o marxismo cultural), manipulação das redes sociais, fomento aos discursos de ódio e intimidação, ameaças. Fatos, dados e evidências são ignorados ou mencionados com sinal invertido. A intenção é turvar a compreensão da realidade, gerar medo e confusão.

A implicância de Jair Bolsonaro com as urnas eletrônicas e seus seguidos atritos com o Poder Judiciário são emblemáticos dessa situação, assim como ocorreu com seu comportamento durante o período agudo da pandemia. Assemelham-se muito mais à preparação de golpes políticos do que a meras manobras para chamar atenção e sensibilizar eleitores.

Ocorre que o iliberalismo não evolui sem topar com pedras no caminho ou sem enfrentar resistências. Ele nasce das circunstâncias que estão a transformar as bases da sociedade moderna e os sistemas políticos, mas encontra precisamente nessa transformação os fatores que o desafiam e o exaurem.

O iliberalismo colide, antes de tudo, com o desejo de liberdade e autonomia, que, entre outras coisas, não é propriamente favorável à existência de patronos ou tutores na relação dos cidadãos com o Estado. É bem verdade que esse desejo é embaralhado pela sensação de insegurança e desproteção que atinge os cidadãos em sua vida cotidiana. Embora impulsione o populismo autoritário, essa sensação não é suficiente para desarmar a ideia de que cada um deve pensar com a própria cabeça, lutar por seus direitos e suas necessidades. Tiranos populistas são incômodos nessa paisagem. Sua reprodução carrega o signo do drama, do atraso, da tragédia.

Em segundo lugar, o iliberalismo agride a democracia, especialmente em sua versão cívica, substantiva, que inclui formas alargadas de participação política, democratização social, respeito a regras justas e a direitos. Não há como ser autoritário num ambiente no qual a democracia vigora como valor, expressão de algo que se aprecia. O autoritarismo pode obter adesões durante algum tempo, sobretudo se for hábil em se disfarçar e fazer manobras de ressignificação conceitual. Em algum momento, porém, as máscaras cairão e as chances de reprodução diminuirão.

A crise dos sistemas iliberais também pode derivar de sua baixa flexibilidade, de sua dificuldade de responder com criatividade e presteza às demandas e expectativas da sociedade. O iliberalismo tem poucos recursos adaptativos e tende a pagar preço alto ao imobilismo, mesmo que tentando apresentar o “não fazer nada” como cálculo político, astúcia do chefe ou heranças malditas. Governos iliberais desprezam a inteligência e a cultura, costumam ser pobres de quadros técnicos e administrativos. Atraem colaboradores que aceitam, sem dilemas morais, o papel de subalternos silentes do chefe. A formação de equipes de baixo nível e de entourages de aduladores torna-se, com o tempo, um fator adicional de desgaste e exaustão.

O iliberalismo não caiu do céu nem foi inventado pela “genialidade” deste ou daquele líder. É uma das traduções possíveis do mundo tresloucado em que vivemos, deste “tempo de governantes incidentais”, como bem definiu o cientista político Sérgio Abranches. Sociedades capitalistas complexas, que giram como bólidos fora de controle e não conseguem produzir vida coletiva sustentável, porque tudo está em transição e em mudança acelerada, precisam de tempo para encontrar os eixos que as estabilizem. Os iliberais trabalham enquanto esses eixos não são encontrados.

Os cidadãos que valorizam a democracia precisam, por isso, não somente combater as estripulias autoritárias dos iliberais, mas atuar para defender o sistema democrático, corrigindo suas falhas e criando condições para que o pluralismo político e a diversidade ideológica não o paralisem.


Publicado em O Estado de S. Paulo, edição impressa, 28/05/2022, p. A8.

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