Uma vitória para resgatar a democracia

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Se confirmados todos os votos, Biden | Kamala mudarão o estado de espírito do mundo

O processo é longo, os resultados demoram a sair, o sistema é intrincado e arcaico. A incerteza costuma acompanhá-lo até as últimas urnas. Ao final, o vitorioso carrega consigo o galardão da legitimidade, dada pelo povo, mas referendada de fato pelos 538 delegados do Colégio Eleitoral.  É uma batalha democrática, mesmo que impregnada de seletividade e restrições.

Nos dias de hoje, as eleições norte-americanas são um megashow televisionado, seguido por todos. Têm forte efeito simbólico, repercutem na política internacional, alteram o humor mundial.  Ganham dramaticidade numa época como a nossa, em que a democracia está sob o assédio de líderes e movimentos autoritários (nacionalistas, populistas) em diversos países. Donald Trump é um deles, o que mais longe levou a corrosão democrática da democracia, quer dizer, a problematização da democracia mediante a manipulação das regras de um sistema que se mantém formalmente democrático.

As eleições de 2020 não foram entre democratas e republicanos, por mais que os dois partidos as tenham protagonizado. Tratou-se de uma disputa em torno da democracia, do seu significado, da sua defesa e valorização ou de sua desmoralização.

A voz das urnas

Os eleitores falaram em massa, em número recorde (150 milhões, aproximadamente). E enviaram muitas mensagens aos políticos. A principal: os EUA são um país dividido, fracionado. Disseram um sonoro “não” a Donald Trump. Nos votos populares, a diferença em favor de Joe Biden ultrapassa 4 milhões de votos. Mas também sinalizaram que não há disposição popular para entregar a alma aos democratas. Não houve nenhuma “onda azul”, nenhum tsunami democrata. Deixaram evidente, ainda, que gostam da “guerra digital” travada nas redes, que turbina a animosidade, retira credibilidade das instituições e amplia o fanatismo binário, bipolar, nós contra eles, o bem contra o mal. É um quadro que facilitou muitas as coisas para Trump.

Mas os democratas têm seus problemas. Conseguiram se unir em torno de Biden-Kamala, o que garantiu o avanço. Mas há um arquipélago democrata  em expansão: grupos identitários, étnicos, religiosos, de gênero, cada um com seu programa de ação. Há também cortes entre a intelectualidade democrata e a massa dos eleitores comuns, entre a esquerda do partido e suas alas moderadas, entre os idealistas mais “culturalistas” e os pragmáticos gestores de políticas públicas. Muitas vezes o eleitorado não compreende as desavenças, não decifra as linguagens, não sabe como formar uma imagem do conjunto. Isso tira competitividade do partido, faz com que ele tenha dificuldade de transformar em vida prática o que repete em seus discursos, ou seja, que os EUA estão se convertendo numa grande sociedade de diversidade crescente e inclinação democrata. É uma narrativa que não vem sendo confirmada de forma cabal. O bloco azul não tem sabido dialogar com o bloco vermelho, construir hegemonia.

Lembro do vaticínio feito por Mark Lilla logo após a vitória de Trump em 2016. Ele escreveu em O progressista de ontem e o do amanhã: : “Os liberais [os democratas autênticos] trazem muitas coisas para as disputas eleitorais: valores, compromisso, propostas políticas. O que não trazem é uma imagem de como nossa vida comum poderia ser, o que a direita americana tem fornecido desde a eleição de Reagan. E é essa imagem — não o dinheiro, a propaganda enganosa, o alarmismo ou o racismo — que tem sido a fonte primordial de sua força. Os liberais abdicaram da disputa pelo imaginário americano”. Acrescentando em tom amargo: “Todo progresso da consciência identitária liberal tem sido marcado por um retrocesso da consciência política liberal”.

Ainda não dá para saber se a visão de Lilla foi ultrapassada em 2020.

O case Trump e o trumpismo

O caso Trump ainda será objeto de estudos sequenciais. Nunca um presidente norte-americano agrediu tanto o sistema democrático de seu país, nunca rompeu tantas regras de conduta, nunca mentiu tão cínica e compulsivamente. Valeu-se de falcatruas constantes, explorando o ressentimento, o medo e a raiva que se acumularam nos EUA com a “desindustrialização”, a vida digital, a perda de força relativa da economia americana diante do avanço implacável do dragão chinês e da mudança dos termos do comércio internacional. Encontrou à disposição uma população preparada para a charlatanice, cortada pelo desespero e pela desilusão, levada pela perda de referências a desconfiar do sistema democrático e a se atirar nos braços de personagens “heterodoxos”, abertamente demagógicos. As redes sociais fizeram com que o rastilho se espalhasse e adquirisse status de verdade.

O personalismo populista e raivoso de Trump, sua agressividade permanente, mobilizou parte importante dos norte-americanos. Apesar de tudo – a resposta pífia à pandemia, as mentiras, o desprezo pela vida, o abandono do meio ambiente, o egocentrismo narcísico, os maus tratos com imigrantes, o racismo, a misoginia explícita – ele conseguiu conquistar mais 4 milhões de votos quando comparado com as eleições de 2016. Tem milhões de seguidores no Twitter, no Facebook e no Instagram.  É um poder de fogo não desprezível, que lança torpedos tóxicos a cada minuto, minando a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.

Chega a impressionar que tal torrente de pessoas tenha aderido a uma plataforma tão mesquinha e reacionária. Por causa de Trump, com ele e apesar dele.

Se confirmada, a vitória dos democratas Joe Biden & Kamala Harris mudará o estado de espírito do mundo, impulsionará uma troca de oxigênio, afetará o modo como os cidadãos enxergam a democracia. O movimento em favor de uma internacional de extrema-direita, dita “conservadora”, perderá gás para se viabilizar. Depois do descaso e do reacionarismo antidemocrático de Trump, poderá haver novamente política democrática. Mas nada será automático. Primeiro porque os EUA estão polarizados de cima a baixo. Segundo, porque a democracia norte-americana enveredou por uma senda enviesada, torta, que distanciou o povo das instituições e da confiança nos procedimentos democráticos – uma senda que permanecerá aberta mesmo com Trump derrotado. Muito trabalho terá de ser feito para repor as coisas no lugar, abrindo espaços para as novas gerações, os movimentos de contestação e antirracistas, as mulheres. O momento pede um esforço articulado para neutralizar o populismo e repor a confiança dos cidadãos na política democrática. Sistemas, afinal, precisam saber se atualizar e cuidar de suas válvulas de escapa, para que não se inviabilizem quando as águas subirem e o vapor aumentar.

Os EUA são uma democracia mais imperfeita do que se imagina. Seu sistema político foi desenhado para beneficiar certos grupos da população mais do que outros, os estados em detrimento do poder federal. Tem um corte oligárquico acentuado. Sempre houve, por exemplo, manobras para dificultar o voto dos mais pobres, dos negros, dos menos instruídos. O próprio sistema é elitista, os votos populares não pesam como deveriam, os delegados ao Colégio Eleitoral são escolhidos de forma restrita. Com o trumpismo, o quadro piorou. O movimento conservador atual maltrata os fundamentos da democracia e mais recentemente passou não só a restringir a votação e a corromper a lógica política, como a judicializar o processo democrático, agindo em nome de um projeto que hostiliza a ideia de justeza das escolhas populares, que precisam ser acatadas. Como se vê nas eleições deste ano, faz-se o possível para roubar legitimidade dos resultados eleitorais.

A judicialização não é exclusividade norte-americana. Está instalada no mundo, reflete a crise da política em que se vive. Não é comum, porém, que se ponha em xeque a lisura das eleições ou que se as leve a decisões judiciais. Governantes autoritários e de extrema-direita é que costumam fazer isso. Bolsonaro mesmo, no Brasil, vive dizendo que teria havido fraude na sua própria eleição em 2018. A extrema-direita faz uso intenso e sistemático da deslegitimação dos processos políticos. Levanta suspeitas, faz acusações e ameaças para que se possa confundir e assustar os eleitores. A ideia é desconstruir a democracia liberal, implodir e manipular as regras e os procedimentos democráticos. É uma espécie de “golpe branco”, que interdita o diálogo, o pluralismo, a vigência de direitos e políticas sociais.  Tudo contra o “sistema”, mas por dentro dele, usando-o contra a democracia.

O discurso de Trump na noite de 05/11, no qual ele acusou os democratas de estarem inventando “votos ilegais” para “roubar as eleições”, foi uma demonstração clara disso. Uma admissão dissimulada de derrota para o “sistema”.

A derrota de Trump não será o fim do trumpismo, que se enraizou na sociedade norte-americana. Os mais de 70 milhões de votos republicanos foram para Trump ou para os republicanos? Será preciso acompanhar para ver como tudo repercutirá no Partido Republicano e como será processado pela população. Trump é a criatura de uma conjunção de forças, fatores, pessoas e grupos.  Como persona, é parte de um movimento que é maior do que ele e deverá sobreviver a ele. Sua derrota não é um recado a governantes que com ele se alinharam e que ajudaram a incensá-lo. Mas é uma indicação clara de que enquanto houver democracia, regras do jogo e eleições competitivas, a extrema-direita não poderá se proclamar dona do universo. Nem ela, nem ninguém, aliás.

Biden e o Brasil

A presidência Biden não terá impacto imediato no Brasil, sobretudo porque o governo Bolsonaro agarrou-se ideologicamente a Trump e optou por seguir uma política externa obscurantista, de isolamento e auto-exclusão das negociações multilaterais. O País deixou de ter voz ativa no cenário internacional. O governo brasileiro poderá optar pelo aprofundamento da condição de “Estado-pária”, manter-se indiferente ao mundo, numa espécie de suicídio nacional. Biden é um democrata pragmático e seguirá a via diplomática. Deverá, porém, exercer pressões não desprezíveis sobre a política ambiental brasileira, sobre o multilateralismo desprezado pelo governo brasileiro, sobre a correlação de forças no mundo. Se o Brasil desejar assimilá-lo, precisará corrigir o discurso seguido até agora pelo ministério de Relações Exteriores e buscar um realinhamento. Biden poderá contribuir para mostrar a farsa que o bolsonarismo montou no País.

A vitória democrata nos EUA não é boa notícia para Bolsonaro. Mas poderá ser ótima para o Brasil.

Terá impacto sobre as eleições presidenciais brasileiras de 2022? É difícil dizer, há dois anos de distância e sem considerar os resultados das eleições municipais de 2020. Com a derrota de Trump, o bolsonarismo tenderá a perder parte da “narrativa” e sofrer algum abalo; as correntes democráticas ganharão um fôlego adicional e serão instigadas a procurar maior unidade e coordenação. Mas tudo continuará dependendo das políticas que o governo vier a praticar até 2022 e da capacidade que tiverem os democratas brasileiros de avançarem de fato em termos de articulação.  Sem que se forme uma rede sólida de entendimentos unindo liberais, conservadores democráticos, socialistas e socialdemocratas, sem que emerja uma liderança moderada que seja aceita pelas diversas correntes democráticas, o processo político seguirá curso errático e tenderá a se inclinar em sentido populista-autoritário.

Agora, é preciso esperar o fechamento completo das urnas, o desfecho dos questionamentos judiciais e a posse do novo presidente.

Bolsonaro deveria telefonar para parabenizar Biden e lhe desejar sorte. O presidente brasileiro, porém, não é dado a tais cordialidades, é mais tosco e bruto. Fará algo protocolar, mas por baixo do pano deverá mergulhar na nostalgia de um tempo em que podia se vangloriar de ser “amigo de Trump”.

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