Erramos. Uns mais, outros menos, mas não houve quem, no campo progressista e de centro-esquerda, deixou de se surpreender com os resultados das eleições de 2 de outubro. Enxergamos, a brilhar no horizonte, novas primaveras e estrelas-guias fulgurantes, que a realidade mostrou serem mais ilusões de ótica do que traduções fidedignas.
Os resultados eleitorais não se resumem à ida para o segundo turno das presidenciais. Era esperado. O impacto maior está no quadro geral. O bolsonarismo levou de lavada as eleições, mostrando uma força que foi tida como episódica em 2018 mas que se mostrou, agora, resiliente e de massas. Sua presença em várias disputas estaduais de segundo turno, sua vitória no Senado e na Câmara Federal, comprovaram que Bolsonaro tem seguidores fiéis e soube apoiar candidaturas vitoriosas, que todos diziam ser cavalos pangaré.
Não foi assim que foram tratadas as candidaturas de Damares, Marcos Pontes, Pazuello, Mourão, Jorge Seif, Moro, Magno Malta, Romário, Rogerio Marinho? Não foi assim que se analisou a candidatura de Tarcísio, em São Paulo, tida como postiça, fácil de ser batida? Não foi assim que os institutos de pesquisa mostraram, semana após semana, Bolsonaro como incapaz de ultrapassar a barreira dos 35% das intenções de voto e Lula, por sua vez, como virtualmente eleito?
Pois bem, o que aconteceu, o que pode explicar essa reversão de expectativas, essa onda direitista que varreu o Brasil pela segunda vez em quatro anos? Análises mais profundas não virão de imediato, terão de ser processadas com calma. Listar alguns pontos pode ajudar a que se inicie uma conversa.
Primeiro. O governismo pesa. Especialmente numa disputa nacional. É um governismo paradoxal, que anseia por mudanças e espera encontrá-las nos espaços tradicionais: a palavra do presidente, a opinião da família, a influência das lideranças religiosas. Um governismo avesso a riscos.
Segundo. O conservadorismo está vivo. Impregna o tecido social. Não está sendo compreendido. Muitos o veem como alojado na política, expressão de um reacionarismo ideológico fabricado. O conservadorismo, porém, viceja no campo dos costumes. É espontâneo e está estruturalmente determinado. A guerra cultural é seu motor de arranque.
Terceiro. A sociedade está desconstruída. Há muita fragmentação, muita individualização, muito “tribalismo” e muitas lutas identitárias, mas não há quem articule isso politicamente. Articular politicamente significa dar um sentido às coisas, compreendê-las, explicá-las, traduzi-las em termos substantivos. Há muito ruído e muita contestação/indignação, mas pouquíssima construção política. As elites artísticas e intelectuais, a classe média escolarizada, esbravejam, protestam e se posicionam sem cessar. A grande massa pobre mastiga silenciosamente a vida dura. E em silêncio, como se surgisse das sombras, manifesta seu governismo e seu antipetismo. Entre as primeiras e a segunda não há comunicação. Nesse vazio, trabalham as lideranças que acenam com resultados “comunitários”, agregações de autodefesa que forneceriam segurança, proteção e identidade. A população decide mais para evitar perdas do que para obter ganhos abstratos.
Quarto. A política ficou dramaticamente personalizada. Não há mais partidos, só personalidades. Não há mais programas, só promessas vagas e apelos patéticos do tipo “confiem em mim”. Nao há confiança nos partidos e a população se mostra cansada de dar murros em ponta de faca.
Quinto. Não se votou pela democracia. Eleições plebiscitárias e polarizadas tendem sempre a maximizar a repulsa, bem mais do que a “limpeza do terreno” ou a valorização do candidato tido como mais democrático. O antipetismo mediu forças com o antibolsonarismo sem que houvesse espaço para proposições despolarizadas e mais ponderadas. Um líder personalizado contra outro. Lula perdeu uma oportunidade de ouro: não falou em democracia, nem em direitos, nem desenhou qualquer política pública para a área social. Por que a população iria referendá-lo? (Mesmo assim, teve um caminhão de votos, concentrados no Nordeste.)
Sexto. A população foi abandonada à própria sorte. O bolsonarismo manteve ativos seus canais de comunicação: redes, famílias e pastores. O lulopetismo não soube criar os seus, limitando-se a confiar no carisma de Lula e na memória afetiva dos eleitores. Estamos carentes de diálogo, tanto entre os democratas, quanto entre eles e a grande massa da população. E sem diálogo, convenhamos, fica tudo muito mais difícil. Não é razoável que se “lacrem” certos candidatos hoje para amanhã pedir que apoiem nossos candidatos.
Sétimo. Houve confiança excessiva nos institutos de pesquisa, que não privilegiaram as camadas profundas da sociedade, ficando somente na superfície. Não se trata de criticá-los, mas de perguntar se as metodologias empregadas não estão por acaso ultrapassadas. Numa sociedade hipermoderna como a nossa, na qual se misturam focos poderosos de exclusão e desigualdade, deslocamentos e tendências são extremamente complexos e difíceis de serem captados.
Oitavo. O capitalismo se tornou um valor popular. A população está propensa a valorizar mais o mercado do que o Estado, deseja empreender talvez até mais do que obter emprego. Ideias socialistas ou social-democráticas – que, em geral, costumam magnetizar o campo progressista – não seduzem. E não seduzem, entre outras coisas, porque não têm sido mencionadas e, quando são, carregam um travo ideológico que não interagem com a vida real. Na campanha de 2022, o antibolsonarismo limitou-se a ser contra Bolsonaro, não conseguindo se apresentar como uma proposta a favor de alguma coisa palpável.
Nono. O sistema político é muito ruim. Os partidos são figurantes de segunda categoria. As trinta legendas que povoam o Congresso Nacional estão voltadas exclusivamente para si próprias. A classe política é medíocre. A sociedade civil tem sua atividade, mas pesa pouco no jogo político. A comunicação política expressa a miséria política geral.
Décimo. Como têm mostrado alguns analistas, a polarização — que se manifestou com força esmagadora nessa eleição — não é política ou programática, nem sequer ideológica. É afetiva, passional. Cada candidato concentra-se em desconstruir e rejeitar o rival, sem opor a ele qualquer ideia substantiva. Apelos a Deus e à família serviram de combustível para Bolsonaro demonizar Lula. Recordações dos anos em que os pobres podiam “comer picanha e viajar de avião” foram enfatizadas por Lula para salientar a crueldade de Bolsonaro.
O segundo turno será vivido com tensão redobrada e muita imprevisibilidade. Sem maiores discussões programáticas, a frente ampla democrática tornou-se um ato de salvação nacional movido a paixões. Corre o risco de ser mera justaposição de peças que não dialogaram entre si: poderá virar um acumulado de compromissos de última hora. Caso vença, terá de se haver com um Congresso que foi eleito expressivamente com sangue nos olhos.
O futuro não será nada fácil. Seja quem for o vencedor, teremos de aceitar que a direita existe, que as refregas políticas ficaram imprevisíveis, que a esquerda não sabe bem o que propor, que o silêncio dos liberais é ensurdecedor, que o centro democrático está a um fio de desaparecer. Que democracia pode ser concebida diante de um cenário desses? Que governabilidade pode ser antevista?