Com a confirmação da condenação de Lula pelo TRF-4, abriu-se uma clareira na política nacional.
Em que pese o componente dramático do fato e toda a controvérsia jurídica que cerca o julgamento, que atinge uma das figuras mais populares da história brasileira recente, o tempo ajudará a que tudo seja processado.
Alguns alegam que Lula nada fez de errado e foi julgado pelo conjunto da obra, outros que não há provas que confirmem as acusações. Há quem diga que tudo não passou de estratégia para afastá-lo da disputa eleitoral, numa demonstração de que a Justiça perdeu as estribeiras. Alguns se preocupam em valorizar os ritos judiciais, outros fazem reservas ao protagonismo das instâncias do Judiciário.
Continuaremos a discutir o tema e a nos dividirmos diante dele. Talvez por muitos anos. A “judicialização” está aí, dentro e fora do país, teremos de nos acostumar com ela.
Por vias transversas, porém, estamos sendo obrigados a fazer um balanço dos últimos tempos e a rever estratégias que, por uma via ou outra, tentaram introduzir novas modalidades de gestão governamental, reformar o Estado e fortalecer a democracia no Brasil. É um balando a cada dia mais imperioso, pois hoje estamos sem projetos e programas claros de ação. O país tateia em busca de um futuro.
Precisamos escapar da reiteração passional do discurso de amor e de ódio ao Lula, razão de tantas divisões e de tanto atraso na formulação política do progressismo brasileiro. Aos poucos poderemos enveredar por um caminho mais laico de luta, que não se renda à narrativa simplista de que tudo o que ocorre no Brasil deriva de um “golpe midiático-judicial”, implacável na perseguição à esquerda e a Lula em particular. O país é bem mais complexo do que deseja essa vã filosofia do golpismo das elites.
A partir de agora haverá mais espaços para que se atualize a compreensão das vias a serem trilhadas para que o país avance. Desfazem-se as ilusões de que tudo depende de alguém revestido de um magnetismo ímpar, que traz nas mãos o futuro da nação. Um novo programa terá de frutificar para que se ataquem as mazelas socioeconômicas e se invista em uma pedagogia cívica que tenha a marca do progresso social e da democracia. Uma nova cultura de governo e de prática política precisará avançar com rapidez. Os candidatos serão instados a se posicionar sem subterfúgios perante a exigência nacional de que a corrupção seja arquivada como conduta política, nas suas variadas manifestações, do ilícito administrativo à obtenção de vantagens pessoais, da formação ilegal de reservas eleitorais à cobrança de comissões obscenas nos contratos públicos.
Ao menos por um tempo a vida política continuará intoxicada pela polarização criada a partir de Lula. O “nós” daí decorrente, porém, tenderá a encontrar um caminho menos grandiloquente. O mito irá sobreviver, mas seu brilho tenderá a esmaecer.
Um país sem mitos políticos a rigor não existe. Seria um arranjo imperfeito, vazio de simbolismo, carente de animação. Mas mitos não precisam ser levados como estandartes que cegam e vetam o pensamento crítico. Podem e devem ser humanizados, extraídos da esfera do sublime, fixados no chão da terra: uma pessoa igualzinha a todas as outras, que comete erros, tem suas paixões, suas taras e seus defeitos, seus méritos e deméritos, falha e envelhece como o mais comum dos mortais. Sua diferença específica não é mágica, mas funcional, de talento e de disposição ao sacrifício.
A condenação de Lula é um soco no imaginário nacional. Mas está longe de representar uma tragédia ou o fim de uma época. Sacode o marasmo mental, incentiva a reflexão e estende um convite para que se redefinam os personagens que ocuparão o palco principal. Não é razoável que o país continue a girar em torno de uma polarização que se reproduz por inércia. É preciso que a realidade seja reprocessada como um todo, para que suas contradições, que são muitas, saiam à luz do dia.
O desfecho do julgamento de Lula não gera mais indecisão do que já se tinha. Ao contrário, pode levar à recuperação de uma racionalidade reformadora – típica do reformismo democrático — que estava perdida. Não retira credibilidade do processo eleitoral de 2018: pode valorizar as escolhas eleitorais, chamar os cidadãos para a esfera pública e instituir uma relação de novo tipo com o Estado e a comunidade política.
Lula seguirá fazendo campanha país afora. Permanecerá com um recall importante, mas terá de elaborar o impacto da condenação e o risco de uma prisão. Quanto mais se mexer e agitar, mais negará a ideia de que é um “perseguido”.
O PT, por sua vez, será desafiado a mostrar se é ou não maior que sua liderança principal, se continuará fazendo de Lula o seu biombo e lhe transferindo todo o vigor partidário, ou se desbravará novos caminhos.
Será tentado a levar a candidatura de Lula às últimas consequências, pois não dispõe de um nome alternativo e precisa ganhar tempo para se reposicionar no território político das esquerdas que aceitaram seu protagonismo nos últimos tempos. Não poderá mais enquadrá-las a partir de uma posição de força. Terá de se abrir ou para a formação de uma “frente de esquerda” desde logo, ou para uma multiplicidade de candidatos que convirjam num eventual segundo turno. Serão decisões difíceis, a serem tomadas por um partido que perdeu alguns de seus ativos nos últimos anos e que costuma ter uma vida interna bastante tensa.
Nas tratativas que ocorrerão, o PT terá de redefinir o slogan “eleição sem Lula é fraude”, que provoca atrito com todos os que decidirem permanecer a sério na disputa. A estratégia mais afastou que agregou. O slogan talvez alimente o radicalismo e a passionalidade de alguns militantes, mas é um bumerangue que precisará ser desativado. Sob pena de fazer o PT desidratar. A “radicalização” anunciada por Gleisi Hoffmann terá de se haver com a perspectiva de sobrevivência política do partido.
O problema é que a sociedade está saturada de polarização política. Há um cansaço cívico (ético-político) diante da manutenção do caso Lula no centro da vida nacional. O que coloca um ponto de interrogação na eventual manutenção da estratégia de judicialização radicalizada da candidatura do ex-presidente.
Apostar no desgaste das instituições, em particular da Justiça e das eleições, não é a opção mais razoável. Como, de resto, ficou evidente ao longo do próprio processo que culminou na condenação de Lula em segunda instância. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/01/2018, p. A2.]
O grande problema que vislumbro, é que a eleição acontecerá em 10 meses e não parece haver, nenhuma liderança que possa definir um eixo de centro-esquerda capaz de atrair aqueles que não querem ficar reféns da polarização. Se tal liderança não surgir, corremos o risco de eleger apenas alguém que continuará praticando a “velha política”.
É um risco real, Alfredo, mas que merece ser corrido. Candidaturas ainda estão em fase de definição e construção. Não dá para afastar a hipótese de que algumas delas venham a convergir, seja em termos de esquerda, seja em termos de centro-esquerda. O processo é dinâmico, a sociedade (parte dela) está na expectativa. Teremos de dar tempo ao tempo. Obrigado pelo comentário.