Beto Albuquerque, vice-presidente do PSB, aparece hoje nos jornais com uma declaração: “Para quem pensa em política, um aviso: ela não foi feita para usar toga”.
A frase, ao que consta, está referida ao namoro do PSB com Joaquim Barbosa, ex-ministro do STF. Beto é contra sua entrada no partido para ser candidato à Presidência. Para ele, Barbosa ainda não despiu o traje de juiz e não tem nem história na sigla, nem trânsito na política. É um neófito, com quem ninguém do PSB “tomou mais que um café”.
Beto Albuquerque fala em causa própria, pois pretende ser ele mesmo o candidato socialista. Está no seu direito. Soltou uma frase que é oportuna seja para que se pense nas eleições, seja para que se analise a complexidade das relações entre o Judiciário e a política.
Ela mostra, mais uma vez, a facilidade com que está se dando a conversão de juízes e personagens do mundo judicial em heróis nacionais, revelando a força imagética e simbólica que passaram a ter os homens e as mulheres de toga.
Há ao menos duas maneiras de se discutir a chamada “judicialização da política”. Não me refiro à vasta literatura acadêmica já acumulada sobre o tema, mas ao entendimento político mais básico, aquele que aponta para interesses, possibilidades, atores, desejos e programas.
Podemos dizer, por um lado, que são os próprios atores do Judiciário – juízes, promotores, procuradores, advogados – que tomam a iniciativa de “judicializar” a política e fazem isso porque não acreditam na lisura dos políticos e se julgam superiores a eles. Por outro lado, podemos dizer que são os políticos que convocam os tribunais para equacionar problemas que eles próprios, os políticos, não conseguem resolver e nem sequer agendar.
Sempre se pode escapar desse dilema dual. A via do meio diria que a política é “judicializada” tanto porque os juízes se politizaram (eventualmente se partidarizaram), ganhando musculatura profissional, quanto porque os políticos já não conseguem produzir zonas mínimas de consenso e veem no Judiciário um ótimo local para transferir essa responsabilidade, com a vantagem de que os tribunais podem ajudar a que se protelem decisões e se criem embaraços para eventuais adversários.
É a reunião da fome com a vontade de comer.
Postas diante do tema da corrupção e da lavagem de dinheiro – componentes do financiamento ilícito de campanhas e do enriquecimento pessoal de tantos políticos –, as relações entre Judiciário e política revelam plenamente seu caráter explosivo. Não é à toa que chovem críticas e aplausos às incursões judiciais na esfera política, avisos de alerta, reclamações e elogios muitas vezes passionais.
Se uma das molas da corrupção é o apetite demasiado humano dos políticos, quem irá admoestá-los e puni-los? A resposta principal é conhecida: os cidadãos, mediante a negação do voto. Os instrumentos do Judiciário, porém, do Ministério Público aos tribunais, passando pela Polícia Federal, serão sempre indispensáveis, até para que se possa ofertar à população dados, indícios e provas de atos corruptos. Sem isso, uma consciência pública democrática e republicana não tem como se completar. Desde, é claro, que circulem movidos por uma mídia responsável.
É o que mostra a trajetória da Lava Jato até aqui.
Diante dela, o caso dos auxílios-moradia do juiz Marcelo Bretas e de sua mulher, também juíza, funciona como uma espécie de trava. Indica que privilégios e estratégias não escolhem morada: estão espalhados por toda parte, como uma praga. Um juiz da estatura de Bretas que não consegue explicar porque se beneficia de um “direito” que ofende a cidadania – ainda mais quando usufruído em dobro – com certeza não ajuda a pavimentar esse acidentado caminho das relações entre o Judiciário e a política.
É um penduricalho obsceno, um dentre tantos outros, que só servem para emporcalhar as instituições jurídico-políticas. Juízes costumam ser muito bem pagos e afirmam que os altos salários são fundamentais para que possam ter a tranquilidade necessária para cumprir suas funções com imparcialidade, sem sofrer pressões e chantagens.
É um argumento razoável. Para sustentá-lo e legitimar a régia remuneração, penduricalhos só atrapalham, fazendo com que a imagem positiva do Judiciário, conseguida por operações como a Lava-Jato, fique corroída e ameaçada de ser dissolvida pelo corporativismo, devidamente condimentado por uma boa dose de onipotência.
[…] Nogueira, Marco Aurelio (2018). “Judicializacao e política”. Disponible en: https://marcoanogueira.pro/judicializacao-e-politica/ […]
Marco, o que me intriga toda vez que mencionas a Lava Jato é que só vês aí virtudes, conferindo-lhe um aval sem restrições ou reservas. Idem quando ao que designas como mídia responsável. No primeiro caso parece desconhecer ou desconsiderar alguns notórios abusos e uma flagrante parcialidade, pois mesmo diante de estridentes evidências comprometedoreas em torno de alguns figurantes de outros partidos, parece que isto não sensibiliza a sanha persecutória ou moralista dos preclaros lavajatistas. Suas ações, iniciativas e procedimentos surgem, por outro lado, como expressando um saber jurídico inquestionável, revestido de completa isenção de valores e mais, não contaminado por nenhum viés ideológico. Não preciso questionar aqui, abstraindo-se o suposto saber jurídico, a (in) capacidade deste pessoal de compreensão do processo histórico para além das tecnicalidades de seu metiér, o que lhes franqueia grande desenvoltura para a exibição de pretensões salvacionistas. No segundo caso, da imprensa “responsável”, acho que sua conduta pregressa ou recente diante de conjunturas exacerbadas de passionalidade política, não lhe confere atributos de grande honorabilidade, veracidade e outras desejáveis qualificações que a tornasse merecedora de um grau minimamente razoável de credibilidade. Abraços
Para mim, Remy, a questão é mais simples: a corrupção existe e é uma desgraça para qualquer política, e especialmente para o campo progressista. Não há porque tolerá-la ou deixá-la impune. A Lava-Jato cumpre uma função democrática importante. A partir dela, o Judiciário passou a ser visto pela população como menos subserviente aos poderosos. Os excessos devem ser criticados, mas não me parece que eles comprometam a operação. O “salvacionismo” é uma praga nacional: alcança Lula e Moro quase que do mesmo modo. Temos de bater firme nessa mentalidade de que há alguns iluminados que nos darão a redenção. Não sou qualificado para analisar meandros jurídicos e procedimentais. Também não tenho como saber se o pessoal é capaz ou incapaz de compreender o processo histórico (muitos de nós, cidadãos, não somos). Valorizo os efeitos políticos. Quanto à “seletividade” partidária, acho que ela deve ser posta diante das prisões, que são muito mais numerosas do lado da “direita”. Além disso, a estratégia anticorrupção posta em prática privilegia os “corruptos e corruptores maiores” para, a partir da sensibilização da opinião pública, alcançar todo o sistema. Se vai dar certo ninguém sabe, mas que está mexendo com o coro dos contentes, está. Abraço
A questão do auxílio moradia recebida até por quem não precisa, traz à tona a questão do “pode ser legal, mas não é ético”. Lembro de Zygmunt Bauman apontando para o fato de que a sociedade tende a tentar regular o que ético via um aumento de legislação. Sempre ajuda, mas jamais conseguirá preencher o vazio ético. Agora, mudando um pouco o foco: esperava uma reação maior da parte dos apoiadores de Lula. O partido fez sua parte, até exagerando no tom da crítica ao Judiciário, mas a base me pareceu muito tímida e conformada.
Verdade, Alfredo. É que deve haver algum constrangimento na base. Além disso, já não se fazem bases como antigamente.
Prof. Marco Aurélio, gostei muito do artigo Judicialização e política. Parabéns. Também foi bastante esclarecedora a entrevista com a jornalista Maria Lídia. Sou advogado tributarista, militei por muitos anos. Costumo acompanhar seus artigos . Fiquei contente por poder contar com mais este veículo de comunicação. Um grande abraço.
Muito obrigado, Dr. João. Será ótimo mantermos contato também por aqui. Abraço