Ao rejeitar, no início da madrugada de 5 de abril, o pedido de habeas corpus de Lula, por 6 votos a 5, o STF ensaiou uma recuperação de sua imagem. A sessão começou, na tarde anterior, em clima tenso. A Corte havia sido fortemente criticada nos dias anteriores e parte da opinião pública a olhava sempre com mais desconfiança, como um recinto dedicado à proteção dos poderosos ou à protelação. Nas ruas mobilizadas no dia 3 de abril, ouviram-se vaias estrepitosas aos ministros togados, junto com ofensas a alguns deles.
O receio de muitos era que, pressionado pelos políticos de todos os partidos, o Tribunal revisse a jurisprudência que adotara em 2016 permitindo, por constitucional, a prisão após condenação em segunda instância. O habeas corpus pedido por Lula era um detalhe, o expediente surgido no meio do caminho para forçar o STF a se re-posicionar. Era o que pretendia a ala mais “garantista” do Tribunal, encarnada nas figuras de Celso de Mello, Ricardo Levandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello, que entraram em cena com sangue nos olhos, dispostos a quase tudo.
Numa extenuante sessão que se se estendeu por mais de dez horas, a Corte reiterou a jurisprudência consagrada desde 2016 e liberou o caminho para a continuidade da Lava Jato, com a possibilidade de prisão de Lula. Exibiu à opinião pública suas divisões internas e seus ritos de difícil compreensão, mas recuperou a condição de parâmetro normativo, que ameaçava perder em virtude de suas oscilações e do ruído provocado por alguns de seus integrantes. Ao mesmo tempo, pacificou provisoriamente o sistema de Justiça. Até quando não se sabe.
O problema está longe de poder ser considerado resolvido. O Judiciário é hoje um poder em busca de estabilização e de legitimação social. Cercado por todos os lados, por dentro e por fora, flutua entre pressões do mundo político-partidário, expectativas sociais e reivindicações corporativas, que sobrecarregam a agenda e criam tensões recorrentes.
Esse cruzamento de pressões, expectativas e reivindicações está na base da efervescência adquirida por um debate aparentemente doutrinário, referido ao modo de conceber as funções da Justiça e as atribuições de seus órgãos, de interpretar as garantias constitucionais aos cidadãos e a própria Constituição, bem como de processar os debates propriamente jurídicos de que são partícipes os integrantes do sistema, antes de tudo os ministros do STF.
A discussão ultrapassa os muros dos tribunais. Por ser um mecanismo de controle, o Judiciário não gera adesões automáticas às suas decisões, que são muitas vezes polêmicas e, por serem assim, misturam-se com os conflitos políticos e as disputas eleitorais. Como hoje tais conflitos estão potencializados e a polarização é intensa, o Judiciário vai sendo arrastado para o olho do furacão.
Muitos estudiosos e analistas políticos estabeleceram que há uma divisão cortando o Judiciário de cima a baixo. De um lado, estariam os “garantistas” à moda antiga, mais conservadores na interpretação constitucional. De outro os “ativistas”, mais atentos às expectativas sociais e dedicados a dar à Justiça um protagonismo decisivo, especialmente no que diz respeito a três temas desde sempre estratégicos: o do processamento das condenações, o da lentidão e da seletividade da Justiça, e do combate à corrupção. Dada a ênfase com que defendem suas posições, os “ativistas” são também vistos como “punitivistas”, imagem que terminou por se consolidar graças à opinião dura e por vezes discriminatória que manifestam em relação ao mundo da política e dos políticos.
Presunção de inocência, trânsito em julgado e prisão após condenação em segunda instância, que vêm dominando os debates plenários do STF, tornam-se assim peças retóricas de um debate que tem algo de doutrinário, mas que é essencialmente político. Tem a ver com a própria ideia de sistema de Justiça, que hoje está de pernas para o ar.
O combate à corrupção, por incidir de forma particularmente forte no mundo político e da administração pública, termina assim por se converter no tema muitas vezes oculto dessa discussão. Há os que querem colocá-lo no centro da vida nacional e há os que querem deslocá-lo para a margem. Os primeiros chegam por vezes a ir tão longe na defesa de suas posições que se chocam com ritos tradicionais e interesses político-partidários. Os segundos mostram-se mais receptivos aos pleitos políticos e zelosos na obediência às tradições.
Para os primeiros, é fundamental que investigados e condenados por corrupção sejam cerceados, julgados, condenados e eventualmente presos. Dizem que sem isso o sistema montado para viabilizar a corrupção crescerá e ameaçará o Estado de Direito. Entendem que o trânsito em julgado configura um indébito benefício para os endinheirados, que podem postergar suas causas a perder de vista, recurso após recurso.
Para os segundos, a corrupção não é questão estratégica e pensam que mais importante que combatê-la é garantir os direitos fundamentais, dos quais o trânsito em julgado e a presunção de inocência estão entre os mais importantes.
Ao se deixar engolfar por essa disputa, o STF não consegue se projetar como vértice ativo do sistema. Choca-se com a PGR, o MPF e as instâncias “inferiores” do Judiciário, como o TRF-4 e o STJ, além da primeira instância de Sergio Moro. Mostra-se incomodado com o “ativismo” da operação Lava Jato, desprezando o quanto ele promoveu de avanço na luta contra a corrupção, deixando correr solta a ideia de que o “mecanismo” trabalha para que os processos e recursos cheguem o quanto antes ao Supremo, vista como casa de maior tolerância e locus privilegiado para “estancar a sangria”.
Provoca, com isso, desencanto e indignação em muita gente, para quem a corrupção configura um quadro intolerável de injustiça e privilégios indevidos — um roubo praticado pelas costas do povo e dos pacatos cidadãos. Atingiu-se assim a inédita situação em que a mais alta Corte do país é vaiada em praça pública.
Mas o STF não é um colegiado coeso, para o bem e para o mal. Perde pontos quando fica paralisado por suas divisões internas, que propiciam o protagonismo individual de alguns ministros. Ganha e soma pontos quando suas maiorias mostram-se fortes para deixar correr o barco da Lava Jato, como ocorreu, por exemplo, com a sessão que examinou o habeas corpus de Lula. Nela, decidia-se muito mais do que a sorte ou a liberdade do ex-presidente: estava em jogo a aprovação dos termos em que se tem enfrentado o problema da corrupção.
Não foi à toa que a sociedade parou para acompanhar as dez horas da votação. E não foram poucos os suspiros de alívio e as comemorações quando a presidente do STF, Carmem Lúcia, desempatou a votação e proclamou a recusa do habeas corpus.
Foi somente um momento, uma espécie de batalha de uma guerra interminável, que ainda não tem data para terminar. Cedo ou tarde o país terá de encarar a crise do Judiciário, que não interessa a nenhum cidadão e enfraquece a democracia política.
Poderes divididos e desnorteados são poderes inoperantes, expostos e devassáveis. Quando um poder como o Judiciário entra em crise e se despedaça, torna-se uma ameaça para a sociedade. Em vez de protegê-la e convidá-la a respeitar a lei e o pacto social que por ela está embasado, converte-se em agente da corrosão ética que ameaça devorar a convivência entre os cidadãos.
Professor, duas perguntas:
1 – Esta situação é tipicamente brasileira, ou dificuldades semelhantes podem ser encontradas em outros países?
2 – Falta em nosso sistema um mecanismo mais efetivo de controle externo do Judiciário, como defendem alguns?
A “judicialização” é um fenômeno global, mas em cada lugar aparece de um jeito. Não vejo como se poderá controlar o Judiciário a partir do exterior do sistema. Os 3 poderes devem funcionar se controlando reciprocamente.