A saída de cena de Joaquim Barbosa, que desistiu da candidatura presidencial, serviu como um novo alerta para os democratas e um suspiro de esperança para os demais candidatos. O ex-presidente do STF saiu atirando, sem ocultar seus titubeios e sua tendência a demonizar os políticos: “Os políticos criaram um sistema político aferrolhado de maneira a beneficiar a eles mesmos. O sistema não tem válvula de escape. O cidadão brasileiro vai ser constantemente refém desse sistema. Você não tem como mudá-lo. Esse sistema contém mecanismos de bloqueio que servem para cercear as escolhas do cidadão”. Para ele, a eleição de 2018 não mudará o país.
Passou da hora de cair a ficha: não se trata do centro, da esquerda ou da direita. Tais posições subsistem e é bom que o façam. Deve ser respeitadas. Não podem ser apagadas por decreto ou mágica, pois fazem parte da dinâmica política de qualquer país. Precisam porém ser “dessencializadas”, saírem da casca ideológica e voarem para a condição pragmática, propositiva, descritiva: há um centro efetivo, ladeado por uma esquerda (mais generosa e igualitarista) e por uma direita (mais vinculada à ordem que à liberdade), mas há também mais de uma esquerda e mais de uma direita. O centro, portanto, mesmo que se proponha a ser um fator de equilíbrio e serenidade, pode pender para um desses lados. Não existe em termos puros.
A atual sociedade brasileira se contorce em espasmos provocados por uma desigualdade absurda, por falhas gravíssimas em termos de políticas públicas básicas (educação e saúde), por uma violência que parece brotar da terra como erva daninha. Está num estado emergencial, diante do qual a única força de propulsão virá de algum tipo de unidade política progressista. Não há como um centro governar o país se fizer concessões à direita fundamentalista ou a uma esquerda que veja a “luta de classes” como principal recurso de pensamento e ação.
Bolsonaro e Boulos têm suas razões, seus admiradores e seguidores. São diferentes entre si, evidentemente. Um quer fazer com que prevaleça no país a “autoridade” em estado puro; o outro quer que seja ouvida a “voz do proletariado e do precariado”. Não há porque devam silenciar. São o que são, e cada um a seu modo fazem com que as coisas fiquem mais claras. Mas há que se pensar nas consequências para o futuro se um ou outro conseguir – não chegar à Presidência, meta remota ou remotíssima – prevalecer no debate político, a ponto de impedir que se discuta o fundamental. Ou seja, um programa realista e generoso para reconstruir o país.
Bolsonaro é um perigo, até porque tem ressonância expressiva em parcelas da população desejosas de “ordem”, fechadas em si mesmas, ressentidas e presas à ilusão de que é preciso defender os “bons costumes”. Há muita gente que pensa assim, mas não é razoável acreditar que esse contingente forme uma maioria categórica. Bolsonaro parece destinado a evaporar ou a ficar no teto que já atingiu.
Boulos, por sua vez, está no hexágono para marcar posição e tentar fazer com que a temática da “igualdade” entre na pauta, devidamente turbinada por uma substancialização que ele, candidato, tempera com uma visão da política como conflito, pressa e contradição, sem margem para negociação ou processamento democrático.
Um e outro simbolizam os extremos que podem dificultar o alcance de uma pauta capaz de impulsionar o país para frente. Mas Boulos não é Bolsonaro e é preciso deixar bem clara a distinção. Bolsonaro é um extremista de direita, convicto e fundamentalista, ao passo que Boulos posiciona-se mais em termos “geográficos”, espaciais, dedicado que está a propor o protagonismo de uma dada esquerda.
Há outros à direita e à esquerda.
À direita, a competitividade não ameaça Bolsonaro: os que com ele concorrem são inexpressivos.
À esquerda, porém, a fragmentação bate ponto. Manuela D’Avila (PCdoB) pode se sair melhor que Boulos no desempenho e na proposição temática: tem mais tradição, um partido mais bem estruturado, maior flexibilidade e a bastante disposição de luta igualitarista. Se ela e Boulos vierem a se unir, e ela conseguir pilotar a união, o debate poderá ganhar um componente (a visão política da igualdade) que até agora tem permanecido ausente. E há o PSB, o PDT e a Rede, imersos em seus planos e indefinições.
Parte disso poderá se articular ou ao menos se aproximar. Não é impossível, mas também não é fácil. Por um lado, há os arranjos e coligações estaduais, que embaralham o quadro. Por outro, há o fator Lula e o PT. Dada a força do partido, seus movimentos tenderão a condicionar os passos da esquerda. Inclusive de Ciro e Marina , que são esquerda de outro tipo, também aqui cada um a seu modo. Mas o PT tem algo de “tóxico”, ficou pesado demais para ser carregado.
Até agora, o PT continua atrelado a seu prisioneiro, sem demonstrar aptidão para voltar ao jogo da grande política, nem mesmo para disputar o poder pelo poder. Está sendo atropelado pelos fatos, que não lhe têm sido especialmente favoráveis. A hipótese menos pior, para ele, é que Lula, lá por agosto ou setembro, consiga concorrer sub judice. Enquanto isso, o partido parece se conformar com um acampamento em Curitiba, perdendo dias preciosos, adiando conversas decisivas, dividindo-se mais um pouco entre “fundamentalistas” e realistas, entre “pessoas de partido” e “militantes da política”, marcando passo na construção da tão falada “frente de esquerda” ou em negociações com candidaturas que, nos últimos tempos, fizeram parte do entorno do partido. Tratar mal Ciro Gomes, por exemplo, ou estigmatizar Marina Silva, mostra o estrago que pode ser causado pela ausência de uma estratégia política consistente por parte do PT. Um pouco de modéstia faria bem. Assim como mais visão estratégica.
O fato é que, além da falta de ideias e consenso, o horizonte também está embaçado pela dispersão e pela ausência de comunicação. Cabeças batem entre si sem que surja uma saída viável, que consiga agregar mais que desunir.
Volto então ao ponto de partida.
A agenda ausente
É um bom momento para que se tente limpar o terreno e dar destaque ao que une e divide os cidadãos que se põem, de um ou outro modo, no vasto território da democracia política, hoje ocupado por diferentes tipos de liberais, conservadores, socialistas e comunistas. Esse emaranhado de atores dificilmente caminhará de mãos dadas, mas pode dar curso a um movimento destinado a minimizar riscos e perdas, ou seja, a pavimentar um caminho de recuperação da governança democrática e de reforma institucional.
Quem, porém, sinalizará a estrada para que isso aconteça?
Eleições são momentos delicados para operações de aglutinação. Ajudam e podem atrapalhar. A competição exacerbada entre partidos e candidatos conspira contra a racionalidade, mas ao mesmo tempo possibilita que venham à luz do dia os pontos centrais da agenda nacional. Tais pontos precisam ser depurados e organizados, com a expectativa de serem integrados a uma ação governamental concreta, a ser consagrada pelas urnas.
Quanto deve, nesse sentido, existir de “idealismo” e de “realismo”? Ou seja, as posições precisam demarcar o que julgam ser necessário e o que julgam ser possível, o que é parte de uma fantasia utópica e o que é projeto. Precisam mostrar o que pode dar certo, passo a passo, didaticamente, sem arroubos maximalistas e exageros retóricos.
No Brasil real que temos diante dos olhos, nenhum governo governará se se mantiver aprisionado a esquemas pré-concebidos à direita ou à esquerda, concentrados no Estado ou no mercado, de costas para as necessidades das maiorias ou referindo-se a elas de modo demagógico. Nenhum “centro democrático” terá sucesso se adotar um reformismo restrito, de tipo neoliberal ou liberista, que não incorpore a população, não trabalhe para reduzir as desigualdades sociais e não atualize o país à época histórica em que estamos.
É por isso que a direita típica, hoje verbalizada por Bolsonaro, tende a morrer na praia, sufocada por suas próprias diatribes e por seu regressismo egoísta, sua violência e seu autoritarismo. É por isso que a esquerda precisa pensar mais no país que em seus próprios botões. É por isso que os democratas de centro, mais liberais ou mais conservadores, precisam romper com seu reformismo restrito e ir onde o povo está. Todos com serenidade, mas sobretudo com ousadia para mostrar quais são os desafios do país, as soluções necessárias, os passos indispensáveis. Candidatos que não entendam que a democracia é o maior ativo do país contribuirão pouco.
É nesse território delicado, complexo e decisivo que repousam os limites e os desafios de Alckmin. Em tese beneficiado pela força ainda remanescente no PSDB, o tucano flerta à direita, buscando apoio ora em Temer, ora em Meireles, ora em Álvaro Dias. Estreita dramaticamente sua campanha e suas opções, disseminando desconfiança entre os democratas. Em vez de ganhar impulso e musculatura, perde força. Se vencer as eleições, será obrigado a governar com o mesmo “Centrão” de sempre.
Todas essas considerações precisam ser submetidas a um pente fino e prestar atenção a um quadro marcado pela instabilidade. O palco está recoberto por névoas e sombras. Até agora nenhum candidato despontou como imbatível ou com força para puxar a fila. Cada qual com seus problemas e idiossincrasias, lutam entre si aproveitando-se mais da fraqueza dos adversários que da força das próprias posições. Não têm um eixo com que chamar o eleitorado.
A saída de cena de Joaquim Barbosa, assim como a de Lula, pouco acrescenta, na medida mesma em que o fator transferência de votos é uma enorme incógnita. A desistência de Joaquim criará a sensação de que haverá mais espaço para os demais e a impugnação de Lula terá de ser em algum momento processada pelo PT.
Pela lógica, Barbosa permanecerá uma incógnita e Lula continuará mandando mensagens ao partido, sem conseguir alterar o rumo das coisas.