Falando a sério sobre Ciro

Paul Klee Insula básica
Um candidato não é só um conjunto de boas ideias ou um lote de promessas. Sua agenda pesa, mas sempre será necessário verificar com quem ele anda e como ele se comporta.

Nas últimas semanas, ele entrou direto no radar da política nacional.

Quando, em 28/5, participou como entrevistado no Roda Viva, o pré-candidato presidencial pelo PDT viu crescer apoios e reações a ele. Compreensível. Afinal, estamos todos sequiosos de saber o que pensam os candidatos e Ciro Gomes é uma estrela e anda sendo seguido como guia por muita gente. Funciona como um divisor de águas, que desperta paixões desmedidas, ódio e desconfiança. É polêmico, age sempre como quem não leva desaforo para casa, compra brigas e “peita” quem dele discorda. Chama, portanto, muita atenção.

Ciro sofre resistência por parte de muitos petistas, que não o querem por perto com receio de que roube o protagonismo de Lula e do PT. Incomoda o “centro democrático” e a esquerda reformista, que o veem como autoritário e impetuoso. É temido pelos liberais, a quem incomoda por sua veia intervencionista. Além do mais, é tido como machão e machista, destemperado e boquirroto. Em termos positivos, há quem o veja como franco, desabrido, audacioso e disposto a brigar pelo que acredita. Um político com opinião.

Tudo isso, devidamente misturado, faz dele um personagem diferenciado.

Ciro anda flertando com os ambientes mais à esquerda, apresentando-se como um progressista que poderia organizar uma frente para “resgatar o país” em nome da dignidade de seu povo. Conclama os progressistas de outros partidos a cerrarem fileiras com ele, convidando-os a perceberem as poucas chances que têm os demais candidatos. Mostra-se compreensivo e tolerante com a resistência dos petistas, em nome da necessidade que se tem de dar tempo ao tempo e aceitar as dificuldades do PT. E ultimamente, passou a bater firme em Bolsonaro, a quem chamou de “tresloucado” e “boçal despreparado”.

Ciro já passou por inúmeros partidos, mais ao centro, mais à direita. Parece não ter conseguido até hoje achar seu lugar no mundo político. Deixa a impressão de que não tolera as idiossincrasias e as exigências partidárias. Usa isso, inteligentemente, a seu favor, proclamando sua “independência” e sua disposição de seguir sempre o que manda a consciência. Também se apresenta, compreensivelmente, como alguém que jamais teve problema com corrupção, que tem uma ficha limpíssima.

Hoje Ciro está no PDT, mas não é propriamente um trabalhista, assim como já esteve no PPS sem ter sido comunista. Começou na Arena, em 1977, passando depois pelo PDS, pelo PMDB, pelo PSDB, pelo PSB e pelo PROS, até desembarcar no PDT. Ciro, porém, não é Brizola. Dele se distingue pelo maior preparo técnico e intelectual mas, por outro lado, não tem metade da sagacidade e da inteligência política de Leonel.

O que o faz ser visto como “progressista” é seu estilo, as coisas que fala e anuncia. Dá a impressão de que traz no bolso todas as soluções, ainda que não seja mero improvisador. Está preparado para enfrentar o debate especializado sem tropeçar muito na língua. Exibe uma imagem de firmeza e intransigência. São características que o ajudam a cavar um espaço no progressismo brasileiro.

À moda antiga

O problema é que há algo de anacrônico no que propõe. Ciro é um progressista à moda antiga, nacionalista, estatista, desenvolvimentista, que vê a Presidência (os cargos executivos em geral) como o locus de onde partirá o reformismo indispensável, custe o que custar. Ele sabe que é preciso atualizar a ideia de desenvolvimento, de modo a não transformar o Estado num interventor absoluto e não hostilizar em excesso o capital internacional. Mas interage pouco à vontade com a nova estrutura econômica das sociedades do capitalismo globalizado – robótica, informatização, problematização do estatismo, diluição das fronteiras, novas formas de trabalho e emprego –, ainda que não seja cego à existência e aos efeitos da “revolução tecnológica 4.0”.  Sabe que isso tudo está aí, já atravessou os portões das nacionalidades, mas acredita que só com uma boa dose de “firmeza nacionalista” e estatismo será possível administrar a transição.

Vale-se de uma retórica marcada por frases antiliberais e refratária a cortes de gastos ou ajustes fiscais. É contrário a privatizações e defende uma reforma tributária que atinja os “setores mais ricos” e cobre impostos sobre heranças, lucros e dividendos. Fala como se não fosse importante haver correlação de forças favorável a essas propostas, o que sugere que operará mediante choques de gestão e “vontade política”. Como é um “cabra arretado”, apresenta isso de modo sempre inflamado e polarizado.

Está aí a dimensão mais problemática de suas proposições, que certamente tem aspectos merecedores da consideração dos especialistas. Ciro, afinal, tem a seu lado o economista Mauro Benevides, com larga experiência em gestão financeira e orçamentária. É assessorado também por Mangabeira Unger, mas não se sabe bem qual seria a contribuição que o filósofo dá a seu pensamento. Há por certo uma estrutura de pensamento técnico-político em tudo o que Ciro propõe, sobretudo em termos econômicos e financeiros, sua área maior de conhecimento. No mínimo por isso, não pode ser tratado com indiferença.

Um candidato, porém, não é somente um conjunto de boas ideias, amarradas por um pensamento teórico consistente. Não é, também, somente um lote de promessas. Sempre será necessário verificar com quem ele anda (as alianças, os compromissos) e como ele se comporta.

Além das ideias

Ou seja, deve-se avaliar o lado político e procedimental de Ciro. Ele se orgulha de ser “do ramo”. É um “cabra da peste” quando fala, corajoso, bom de retórica, sem papas na língua. Mas isso precisa ser depurado. Passa a impressão de que está sempre jogando para a plateia. Parece seguir um script decorado. Como está disputando voto com os demais candidatos, é preciso fazer um desconto. O problema é a empáfia: eu fiz, eu posso, eu sou, eu aconteço, tudo o que fiz no Ceará etc. Seu estilo vigoroso, enfático, auto-referido, é uma arma de dois gumes. Se, por um lado, passa a impressão de firmeza e convicção, por outro impulsiona a imagem de um cara que fará tudo diferente, como se representasse a ruptura com “isso que está aí”. Para ele, onde pôs as mãos nasceu ouro. Ele teria a solução para todos os problemas, mesmo os mais complexos, pois tudo dependeria basicamente de “vontade política” e “boas ideias”. Faz lembrar o discurso do “nunca antes nesse país”, de triste memória.

Ciro não revela suas fontes nem demonstra a viabilidade de suas propostas. Fala pelos cotovelos, encadeando dados e fatos sem deixar a plateia respirar. Faz muita questão de exibir sabedoria e domínio da economia, mas não se sai bem em outros temas (educação, questões identitárias e de gênero, saúde, habitação, cultura).

Seu estilo “bate e morde”, com direito a palavrões e ofensas generalizadas, é grosseiro e de mau gosto. Tem feito com que acumule processos por injúria e difamação. O slogan “Ciro sincero”, que circula nas redes, mostra que seus seguidores já localizaram o ponto fraco do candidato, que costuma desqualificar seus adversários com adjetivos pesados tipo “sindicato de ladrões”, “bandidos” e “cleptocratas”.

É um estilo que gera dúvidas quanto à capacidade que teria Ciro de governar no presidencialismo de coalizão que temos no Brasil. O sistema requer jogo de cintura e abertura ao diálogo, à negociação, sem o que o Congresso não cooperará com a Presidência. Adjetivos cabeludos não ajudam. Se o presidente tem um partido fraco e não elege consigo uma maioria sustentável, não governará com facilidade. Mesmo Lula e Dilma, que tinham consigo um PT no auge da força, foram obrigados a girar à direita, para buscar algum equilíbrio fora dos limites partidários. Não consta que o PDT seja um partido forte, nem que conseguirá se fortalecer expressivamente nas eleições.

Alianças sem critério

Donde a necessidade que Ciro têm de resolver a questão das alianças, sem as quais não vencerá as eleições e não conseguirá governar. É aí que a porca torce o rabo. Ele deseja ser o “candidato da esquerda”, PT incluído, mas não tem dificuldade (nem pruridos) de também cortejar a centro-direita mais conservadora (DEM e PP), na expectativa de ampliar sua coligação. Por isso, seu discurso flutua, sem estacionar em um polo exclusivo.

Pode ser uma prova de flexibilidade, mas é acima de tudo um sinal de fraqueza e ansiedade.

Ciro merece o benefício da dúvida. Tem o que propor e oferecer ao país. É inteligente e, por isso, pode avançar para posições de maior generosidade e desprendimento.

Mas precisa se credenciar mais, romper com a imagem de que flerta com o “autoritarismo”. Sua grosseria não se associa só ao fato de estar em campanha e ter de mostrar “radicalidade” e veemência para pescar alguns votos a mais. É uma atitude que parece intrínseca à sua persona. Um político que se julga experiente e preparado não pode circular de agitação em agitação, movido a espasmos viscerais. Precisa deixar claro que tem disposição para dialogar com serenidade, sem fazer acertos de contas a cada momento.

Ciro tem combustível para isso, seria excelente se se dispusesse a atravessar o Rubicão, ajudando o país a encontrar uma saída razoável. Até agora, os candidatos estão fechados em si, enveredando por uma disputa sangrenta no correr da qual alguns ficarão irremediavelmente pelo caminho, mortos ou extenuados. O momento não é de escolhas fundamentalistas ou ideológicas. Os candidatos ainda nem sequer se apresentaram adequadamente, e o que chega aos cidadãos são jogos de cena e referências imprecisas. O debate público poderá ajudar a que isso seja superado. E aí será preciso dosar a voz, indo além da estridência enfática e dos discursos em favor da “autoridade”, seja a do Estado, seja a do grande líder.

Não será batendo no peito ou esmurrando mesas que os democratas darão sua contribuição, nem muito menos fazendo sangrar as diferentes correntes políticas ou isolando-se em uma arrogância autossuficiente.

O segredo do futuro estará na capacidade que os diferentes personagens da democracia brasileira tiverem de trabalhar em conjunto, suspendendo as agressões recíprocas e a competição desabrida. Sem uma “frente democrática” consistente, o país será ingovernável.

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Loreley Garcia
6 anos atrás

Muito bom, so destaco que não é apenas anacrônico, ele é um candidato desafinado com as necessidades do século XXI. É político da velha cepa travestido de “moderno’, não é. Não é um ‘ cabra da peste”, é sim um ” cabra safado”. Veja o que fez com o Ceará que em termos de violência caminha para ser um Rio de Janeiro! Belo serviço, cangaCiro!

Marco Antônio T. Coelho Fh
6 anos atrás

Perfeito , Marco. O Ciro deveria ler atentamente essa sua análise. Só teria a ganhar.

Luiz Antonio Palma e Silva
6 anos atrás

Certa vez, durante o mandato de presidente, Fernando Henrique, diante de uma decisão errática que o levou a um recuo tácito, deixou o sociólogo falar: “sou um amante da dúvida”. Gosto disso.
Também me oriento por sua (Marco Aurélio) imaginação construtiva da política . Forte abraço!

Luiz Antonio Palma e Silva
6 anos atrás

Uma Frente Democrática deve ir muito além da “demorex” : democracia realmente existente ou da “demodopos” – democracia do possível. Os anos de “democracia” da Nova República demonstraram esse limite pois tudo se deu para equilibrar vontades e poderes de grupos políticos, empresariais e a substância “mercado”. Em certos períodos, até avançamos e conquistamos direitos pela via constitucional da democracia participativa mas sequer resvalamos em reformas estruturais. E tais os mecanismos de participação direta, os conselhos participativos, no momento estão com o “virus chapa branca”. Sinceramente Marco, não vejo essa possibilidade crível com as “cabeças políticas” do meio de campo. Será mais do mesmo. Inclusive com Ciro, que de radicalidade só tem mesmo o impulso psicofonético. Abraços – com admiração! LP

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