A Copa e o jogo da vida

Futebol, Henfil
Seria milagre se o futebol brasileiro não refletisse o desarranjo que há tempo se propaga no país.  A reconstrução do futebol faz parte, em boa medida, da reconstrução nacional. Não será fácil revolucionar o futebol que se joga no Brasil.

Eliminada a seleção, natural que explodisse no país um oceano de lamentos e explicações. Todos os brasileiros consideram-se especialistas no assunto, como se sabe. As redes sociais, em particular, vocalizaram uma algaravia de manifestações, numa mistura de sofrimento, decepção e constatações apressadas: o povo pobre perdeu uma de suas poucas alegrias, a tristeza se abateu sobre a sociedade, a crise voltou ao Brasil, as falhas foram do conservadorismo de Tite e dos jogadores que estavam fora de forma ou “estourados”, além da pipocagem de alguns tidos como fora-de-série, o jogo foi marcado pela aleatoriedade e pelo acidente, a culpa, no fundo, seria da corrupta CBF e da cartolagem incompetente.

No dia seguinte da “desgraça”, porém, não se viu vivalma se derramando em lágrimas pelas ruas, nem nas casas a tristeza marcou presença. E não foi por excesso de “normalização” ou por falta de paixão, mas sim por uma surpreendente e espontânea compreensão crítica das coisas. Não houve conformismo, mas a percepção de que o acontecido na Rússia, com a eliminação da seleção para a Bélgica, nas quartas de final, estava escrito nas estrelas.

O brasileiro médio, os jornalistas esportivos, os amantes do futebol saíram a campo para tentar explicar o que, em termos esportivos, parecia óbvio: no esporte bretão, também vencem os melhores, e a equipe brasileira não foi melhor contra a Bélgica, como provavelmente não seria melhor contra a França, a Croácia ou a Inglaterra, as seleções que chegaram às semifinais. Poderia ter vencido, claro, pois no futebol nem sempre os melhores saem vencedores. O imponderável está inscrito na própria bola. Mas não é todo dia que ele se manifesta.

A Copa 2018 está sendo a expressão de uma hegemonia: de uma direção intelectual e moral no futebol. Uma hegemonia que se afirma a partir da Europa, onde estão os grandes clubes, as equipes mais poderosas, mais ricas e mais bem estruturadas, os jogadores que fazem a diferença. É uma Europa que, depois de ter visto a Inglaterra inventar o futebol moderno no final do século XIX, está sabendo reinventá-lo em sintonia com os avanços da vida moderna e da globalização. As grandes potências – Alemanha, Inglaterra, França, Rússia – seguidas pelas potências “secundárias”, a Espanha, a Suécia, a Bélgica, a Croácia, algumas das quais nem potência são, não somente jogaram rios de dinheiro na revitalização do esporte como também adotaram políticas esportivas e futebolísticas que, com o tempo, plasmaram um novo jeito de jogar bola. Criaram “filosofias” nacionais que se disseminaram pelos países, chegando aos bancos escolares, aos jovens, aos clubes, aos centros de treinamento, impulsionadas por tecnologia, ciência esportiva, aparato fisiológico de vanguarda, mentalidade vencedora. Em diversos países, a paixão pelo futebol se encarregou do resto.

Beneficiaram-se também – ponto decisivo – da importação de talentos de outros continentes (América do Sul e África, sobretudo), que ajudaram a suavizar a dureza tática e disciplinar do futebol europeu com doses generosas de ginga, habilidade, improvisação e malícia, coisas que haviam feito a fama, por exemplo, do futebol brasileiro. Souberam se abrir para outras culturas, outras etnias, incorporaram os imigrantes, numa rica miscigenação esportiva. Na seleção francesa, por exemplo, a maior parte dos jogadores tem origens africanas.

O resultado foi o surgimento de uma safra formidável de jogadores e de equipes excepcionais, que passaram a aliar força física com disciplina tática, técnica rigorosa e habilidade. Tudo isso passou para as seleções nacionais, para a Eurocopa e aos poucos para as sucessivas Copas do Mundo. Os 7 x 1 de 2014 não foram obra do acaso, mas o resultado de um longo e bem pensado trabalho.

O resumo é que enquanto os europeus se aperfeiçoaram em termos futebolísticos, no Brasil, na América do Sul e na África o futebol estagnou. O mundo árabe e a China estão esquentando os motores e vão complicar ainda mais o quadro. Continuou havendo, por aqui, entusiasmo, empolgação e interesse, mesmo depois do desastre de 2014. Os clubes de massa continuaram fortes e levam milhares aos estádios, mas o Campeonato Brasileiro não saiu do lugar. Alguns jogos chegam a ser patéticos.

Tudo conspirou contra: a CBF e sua gestão torta, a falta de investimento, o saque europeu que nos rouba talentos ainda jovens, os clubes dirigidos de forma amadorística, a mentalidade “boleira” do jogador, ainda convencido de que um bom estoque de dribles e malabarismos, apimentados com malandragem e malícia, seria suficiente para vencer e convencer. Continuou impávida a convicção de que uma ginga genial quebra a coluna vertebral dos adversários. Permaneceu a arrogância, mesmo que o ambiente do futebol mostrasse (pela TV, sobretudo) que os brasileiros não podem mais se considerar imbatíveis, ainda que continuem a jogar bem. Podem formar boas equipes, mas nada além disso.

O que se viu na Rússia com a seleção e o que se continua a ver com os jogos restantes é uma competição equilibrada, na qual os participantes não se distinguem em “craques” e “grossos” e todos têm trunfos a exibir. Os canarinhos mostraram os seus, mas em dose muito baixa. Poucos jogadores se destacaram, as grandes estrelas decepcionaram, em comparação com as equipes mais fortes os brasileiros ficaram um degrau abaixo nos fundamentos e nos atributos físicos, técnicos, táticos, disciplinares. A seleção poderia ter ido além, estava bem armada, mas não era imune a suas próprias falhas nem aos méritos dos adversários. Não jogou mal contra a Bélgica, mas perdeu.

Tite fez até agora um excelente trabalho, de reconstrução e recuperação da autoestima, mas precisa de tempo para inventar uma nova maneira de jogar e semeá-la entre os jogadores.

Não conseguirá muito se o entorno não ajudar. Se não houver uma política para o futebol, se não houver adesão dos clubes. Sem um bom “ambiente de negócios” nenhum empreendimento frutifica. Assim na economia, na política e no futebol. Em tempos de globalização acelerada do esporte, é preciso reconstruir, quem sabe começar do zero. Reorganizar os calendários e os campeonatos, blindar os jovens talentos, desmanchar as máfias poderosas que chantageiam e mandam em tudo, elevar o padrão de jogo, de gestão, de jogador, de técnico. A própria crítica esportiva precisa evoluir.

Humanizemos e civilizemos os jogadores, sobretudo os mais jovens. Não deixemos que eles se tornem presas fáceis de empresários e dirigentes pouco escrupulosos, façamos com que saibam lidar com a publicidade e a mídia, que muitas vezes os glamouriza e infantiliza. É preciso escolarizá-los e educá-los adequadamente, levar a sério a tese de que, hoje, nesse mundo intensamente racionalizado, não basta ter aptidões naturais ou talentos mágicos: é preciso saber falar com a mídia, ler o jogo, incorporar suas exigências, compreender os adversários, absorver intelectualmente a vida em que se joga o jogo. Atletas mal preparados e convivendo em um ambiente inadequado não podem ser competitivos, nem mesmo encantar as multidões.

Seria milagre se o futebol brasileiro não refletisse o desarranjo que há tempo se propaga no país.  A reconstrução do futebol faz parte, em boa medida, da reconstrução nacional.

As manifestações dos torcedores brasileiros durante a Copa refletem certamente o modo como pensam e agem politicamente. Muitos acham que os governos e os políticos são responsáveis pelo que há de errado no empreendimento futebolístico do país. Criticam a CBF, essa entidade merecedora da suspeita geral. Outros pensam que o futebol pode resgatar a dignidade nacional e contribuir para colocar as coisas no lugar. Há os que repudiam a apropriação comercial do evento e há os que desprezam o lado “mercenário” dos jogadores. Isso para não lembrar os que choram de emoção quando a “amarelinha” entra em campo e os que julgam não existir identificação da seleção com o país porque a população mal conhece os jogadores, que jogam em times do exterior.

O jogo serve para produzir esperança e para protestar. Para extravasar alegria ou disseminar ódios e ressentimentos.

Quando dos 7 a 1 que a seleção levou da Alemanha, em 2014, queimaram-se bandeiras, caçaram-se os responsáveis, fizeram-se acusações, falou-se que a seleção tinha “obrigação de vencer” mesmo que estivesse despreparada e praticasse um futebol abaixo da média. Tentaram explicar o que se considerou “inexplicável”, como se na vida houvesse a intervenção constante de forças misteriosas. No primeiro instante, ninguém viu que a Alemanha venceu porque deu um banho tático, técnico, físico e emocional na seleção brasileira. Não se analisou o jogo “politicamente”, quer dizer, como uma disputa entre contendores que respeitam regras e buscam fazer com que o substantivo prevaleça sobre o adjetivo.

Dessa vez, em 2018, nada disso aconteceu. O que prova ao menos que houve um certo amadurecimento.

Futebol é um jogo coletivo, que precisa prevalecer sobre as individualidades e que reflete o que deve haver de projeto e mentalidade, de plano e espontaneidade, de preparo e improviso, de fortuna e virtù, de disciplina e organização, em um esporte popular. Os brasileiros são bons futebolistas, mas sua cultura futebolística não é tão boa: o brasileiro (o torcedor, o jogador, o técnico) acha que futebol é um esporte que depende do estalo de genialidade de um ou outro Garrincha, de um novo “rei do futebol”. Não valoriza esquemas táticos, disciplina, preparo técnico, estudo e espírito coletivo, debochando das escolas que primam por isso, como é o caso da Espanha, da Alemanha, da Argentina. Nossos atletas são predominantemente simplórios em qualquer quesito que se queira. Toscos. Alguns poucos se distinguem, mas no conjunto não passam de boleiros. Também por isso, a seleção é montada com jogadores que jogam no exterior. Futebol dá mais certo quando praticado por times que reúnem talentos individuais, disposição tática, transpiração e entrega coletiva. Raramente temos isso no Brasil.

Não dá para aprisionar o futebol em quadros sociológicos rígidos, como se fosse possível ver nele o espelho da sociedade. Nem muito menos faz sentido misturar futebol com política partidária, com governos ou lideranças. Há ligações entre o modo de viver, a cultura e o modo de jogar, mas o futebol não é a encarnação do que há de bom e de ruim numa sociedade, assim como não é a “pátria de chuteiras”. Triste seria uma nação que só encontrasse as razões de sua felicidade ou de seu orgulho em um único esporte. A cultura, o caráter das pessoas, a natureza, a música, a culinária, a criatividade popular, tudo isso pode funcionar como fonte de identidade nacional e reconhecimento. Uma seleção não nos representa, se é que se pode dizer assim: representa somente a si própria, ou seja, aos técnicos, aos dirigentes e aos jogadores que a integram, ainda que possamos torcer por ela e gostar de vê-la vencedora.

Não há complexo de vira-latas quando se fala mal do futebol jogado no Brasil. A seleção pode ajudar a fazer com que o quadro se altere, mas não porque trará um novo caneco para casa e sim porque poderá expressar um esforço coletivo que reinvente o futebol por aqui. A começar da defenestração dos cartolas, da reforma radical da CBF, de uma mudança no modo como o esporte é gerenciado e organizado. Nunca estivemos tão ruins. Os jogos do Campeonato Brasileiro são de baixíssima qualidade, há excesso de faltas, poucos gols, os campeonatos são pessimamente organizados, as torcidas se afastam dos estádios, o profissionalismo dos atletas ainda é precário, os cartolas são patéticos e corruptos.  O sistema é sofrível, e está a serviço exclusivo do mercado da bola. Um espetáculo de horror.

Não dá prá continuarmos deitados nas glórias do passado, sem humildade e inteligência para reconhecer erros e falhas, limites táticos e técnicos.

Está mais do que hora de fazermos uma revolução. Organizacional, de mentalidade, com um componente forte de “desmercantilização” e uma injeção de profissionalismo bem compreendido. Recomeçar de baixo, ensinando aos garotos que futebol exige dedicação, domínio de fundamentos, não é um lance de malabarismo e genialidade a ser treinado repetidamente para atrair o olhar cobiçoso de algum empresário. Nossos jogadores, em sua maioria, só aprendem respeitar táticas e a chutar bem quando saem do país.

Não será fácil, com a estrutura que está aí. Mas podemos começar abrindo mão da  arrogância futebolística, desse lance de que estamos predestinados a exibir ao mundo a qualidade inimitável do nosso futebol. Isso acabou, se é que algum dia existiu de fato. É preciso olhar no olho da realidade e aceitar o futebol como ele é.

O futebol tem muito de vida e política: desejo de vencer e sobrepujar, derrotas doídas, simulações e dissimulações, dribles, faltas, glória, fracasso, castigos e punições, fatores imponderáveis. O jogo é um misto de força física e inteligência. O centauro maquiavélico entra em campo. E como o Príncipe, precisa saber ser lobo para confrontar os lobos do outro lado e ser raposa para desarmar as armadilhas que encontrará pelo caminho. O jogo jogado tem maior poder de decisão. Mas não são desprezíveis as artimanhas antes e durante o jogo.

Reconstruir o futebol precisa fazer parte do que haverá de “reconstrução nacional” daqui para frente.

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