O fundamental e os nomes já eram conhecidos, circulavam há tempo. Mesmo assim a “lista de Fachin” causou enorme rebuliço e praticamente paralisou o País. Provou não só que os nervos estão à flor da pele, como que o universo político — todo ele, de cima a baixo, da esquerda à direita — ingressou em deterioração acelerada. “Septicemia republicana”, escreveu Vera Magalhães em sua coluna no Estadão. Imagem forte, mas fiel aos fatos.
O “estrago” passou agora a ser oficial. Inquéritos foram abertos contra oito ministros de Temer, 24 senadores, 40 deputados, três governadores. São 20 nomes do PT, 17 de PMDB, 13 do PSDB. Oposição e situação igualmente contempladas. Um alvoroço compreensível.
Muitas perguntas dilemáticas saem da divulgação da lista e da liberação dos vídeos com os depoimentos dos delatores. A principal parece ser: neste cenário de sobreviventes e suspeitos, que autoridade moral haverá para que se examinem e se processem as reformas tidas pelo governo como indispensáveis? Quem terá estatura, coragem e disposição para por o guizo no gato?
O próprio governo Temer, sujeito mais ativo da trama, sangra em cena aberta. Olha para o espelho e se vê cercado por destroços e peças de demolição. Está ameaçado de perder, de uma só vez, todo o seu núcleo duro e alguns de seus articuladores mais importantes. Salvam-se poucos de seus quadros, dentre os quais já são poucos os que conjugam lé com cré. Em condições normais de temperatura e pressão, seria um morto-vivo. Mas as condições não são normais.
Fora do círculo governamental, incluindo nele as bases parlamentares de apoio e seus partidos, o cenário não é melhor. As oposições se reduziram à impotência. Carecem de clareza e se mantêm em agitação permanente graças a um repertório miseravelmente pobre, reduzido à denúncia do golpe e da impopularidade das reformas. Nada propõem de construtivo, parece nem sequer se dar conta de água que a sufoca já passou do pescoço. Sua ladainha se dá ao luxo de fazer de conta que não há, em seu campo, montanhas de dinheiro sujo e de transações ilícitas, com que se azeitaram algumas engrenagens e se impulsionou o enriquecimento de algumas pessoas. Não admite que a oposição — a esquerda, sempre tão orgulhosa de sua integridade ética — possa ser acusada de corrupção. Prefere dizer que isso é coisa do Moro e da mídia golpista.
Faltam lideranças democráticas no País. Andamos às cegas. Faltam-nos nomes, propostas, planos de voo, cartas de navegação.
A intelectualidade está como que desfalecida, reclusa em seus nichos e reduzida aos bate-bocas estéreis e narcisistas das redes sociais, onde a agressividade e a grosseria continuam a prevalecer. Cada um toca sua partitura, faz suas pesquisas e representa um papel, mas ao passo que uns se agitam com frenesi outros mal saem do sofá confortável da contemplação. É como se não houvesse mais pensamento disposto a pular sobre a vida.
Por extensão, a sociedade fica largada à própria sorte, mastigando sua raiva, seu ressentimento, suas frustrações, seu “ódio aos políticos”, sem que ninguém a ajude a ver o quadro com mais serenidade e equilíbrio. Por “sociedade” entendam-se também os movimentos sociais, em quem tantos depositam tantas esperanças. Na melhor das hipóteses, são movimentos corporativos, escravizados por seus dirigentes, que olham para os próprios pés e, regra geral, não vão muito além do sebastianismo que pede a volta redentora de Lula, o eterno injustiçado, enquanto engrossam o caldo insosso da denúncia do “golpe” e do “caráter seletivo” da Lava Jato. São, claro, contra todas as reformas, mas não apresentam uma reforma para chamar de sua. Vão com isso puxando a esquerda para o fundo do poço. E atraindo os movimentos de direita, que copiam seus gestos.
Pela direita, um misto de aventureirismo e regressismo busca capturar os cidadãos indignados, abandonados pela esquerda e que dela se afastaram. Uma disputa por hegemonia, que de modo algum poderia ser dada como resolvida, mas que só é levada a sério pela própria direita. Boa parte da esquerda embarca numa canoa parecida. Fala-se em “onda conservadora” para qualificar os que aplaudem a direita pura e simplesmente para demarcar sua distância da esquerda. Chama-se de “fascista” a dona de casa que não aguenta mais assistir à novela da corrupção. Dá-se como favas contadas que a população derivou para uma pauta racista e homofóbica. Pouco se faz para que se compreendam as motivações que vêm de baixo e os impactos socioculturais das imponentes mudanças estruturais que nos afetam. Aceita-se, com a maior facilidade e superficialidade, sem pegada crítica mínima, do suposto de que no País somente pulsam a “violência do Estado”, a força policial contra os pobres, maltratados sem pena por elites retrógradas e uma classe política acanalhada.
Não surpreende que deste diagnóstico superficial derivem pregações catastrofistas, que cancelam o que há de vida ativa na sociedade e aplaudem todo e qualquer ato de “protesto contra os políticos”. A violência teria de ser combatida com mais violência, só que com sinais trocados: não a do Estado, mas a das “ruas”.
Cenário desolador. Mas não é a política uma ferramenta vocacionada para abrir portas e responder à mudança dos ventos? Sendo assim, não se deveria descartar que entre os destroços, e precisamente por causa deles, emerja uma iniciativa que ponha na mesa, sem receios calculados ou sinceros, uma agenda democrática positiva, que resgate o País das garras do sistema político e o faça agir como Estado, como comunidade política.