A polêmica está no ar, sem data para terminar. Entendidos e estudiosos de todos os quadrantes manifestam-se sem parar. A discussão é intensa, mas há poucos consensos razoáveis.
Estão certos ou errados os que acusam os defensores da prisão após condenação em segunda instância de estarem “rasgando a Constituição”?
A Lei Maior também pode ser interpretada, fato que costuma ocorrer com regularidade, ainda que nem sempre de forma explícita. Nem todos os seus artigos, mesmo os “pétreos”, são cumpridos. É o que ocorre, por exemplo, com tudo o que diz respeito aos “deveres do Estado”, especialmente na ordem econômica e social. O princípio de que “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido” é um parâmetro abstrato e, como os demais, precisa ser posto em contato com a dimensão fática, os fatos duros da vida.
Os que hoje problematizam o entendimento da “presunção de inocência” estão fazendo precisamente isso. A posição implica autorizar as prisões após julgamento nas duas instâncias iniciais, sendo assegurados os recursos aos tribunais superiores, mas com o réu preso. O próprio STF já enfrentou o tema e por duas vezes, em fevereiro e outubro de 2016, reiterou a possibilidade de que os condenados em segunda instância sejam presos.
Não é claro o que motivou a reabertura da questão justo agora. É muito provável que os ministros do Supremo tenham cedido às próprias preferências diante do “problema Lula”, sem o qual por certo a discussão não estaria na mesa. Há bastante empenho doutrinário para recobrir a politização que contamina o Tribunal.
A ala “legalista” do STF quer, em nome da Constituição, postular que cabe à Justiça ser célere e dura no combate à corrupção, assim como faz com aos crimes hediondos. Entende que a corrupção é tão grave quanto. Contrapõe-se aos “garantistas”, que ponderam que nenhum crime pode ser punido sem que se esgotem todos os recursos balizados pelo princípio constitucional da presunção de inocência e dos direitos fundamentais. A prisão só seria legítima depois do “trânsito em julgado”, dando-se pouca importância a eventuais postergações que dilatem os tempos ao infinito. Os que tratam a corrupção como mal maior não concordam com isso.
O grande jurista e ex-ministro do STF, Eros Grau, tem posição clara a respeito. Para ele, o artigo 5º da Constituição, inciso LVII — “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” — não pode valer conforme as circunstâncias, dado que existe para garantir os direitos fundamentais do cidadão. Não tem como ser interpretado livremente, ou de modo diverso, goste-se ou não. É uma visão próxima à de Rosa Weber na última sessão do Tribunal.
Procuradores vinculados à Lava Jato caminham em sentido oposto. Deltan Dallagnol, por exemplo, acredita que “nenhum princípio da Constituição é absoluto” e a presunção de inocência “deve ser compatibilizada com outros direitos e valores constitucionais e com a eficiência da Justiça”. Defensor da prisão após segunda instância, ele considera que a Constituição estabelece que ninguém será “considerado culpado” até o trânsito em julgado, mas “não fala que ninguém será preso” até que todos os recursos sejam esgotados.
Há complexas questões doutrinárias e conceituais subjacentes à discussão. Das mais simples, uma está associada à distinção entre condenação e prisão, com os respectivos impactos na liberdade do acusado. Outra passa por definir se a Constituição pode ser interpretada, quando e sob quais condições. Seria inconstitucional uma atitude que interpretasse que a corrupção, por exemplo, é tão perniciosa para a sociedade quanto os “crimes hediondos” (que preveem prisão antes de esgotados todos os recursos)? Um serial killer, um terrorista ou um torturador contumaz deve merecer tratamento diferenciado, proporcional à gravidade de seus crimes, ao passo que um corrupto provado, que enriqueceu e/ou manipulou o sistema político com recursos pagos pelo conjunto dos cidadãos, deveria ser aliviado pelo mero fato de não ter sujado as mãos em sangue?
Se os acusados pobres não têm como pagar as custas e os honorários dos advogados de ponta – que são os que dominam a matéria jurídica e tem poderosas redes de influência –, o trânsito em julgado serve-lhes menos do que para os cidadãos mais ricos. É uma assimetria, que não deveria prevalecer.
O tema um dia terá de ser enfrentado: poderá haver justiça num sistema que somente garante a liberdade aos que podem pagar advogados caros e trafegar pelas várias instâncias durante longos períodos de tempo? Feitas as investigações, reunidas as provas, ouvidas as perorações das partes e concluído o julgamento nas primeiras duas instâncias, que são as que deliberam sobre crimes e responsabilidades, o que mais poderá ser arguido nos tribunais superiores?
É difícil para o cidadão comum compreender isso. Generaliza-se a sensação de que o sistema beneficia os mais ricos e sanciona a impunidade, com condenações graves não sendo efetivamente cumpridas. Tudo isso é péssimo para a democracia e a ordem social.
Alega-se que a prisão após segunda instância poderá vir carregada de vícios e manipulações. Os que defendem Lula, Eduardo Cunha, Sergio Cabral e José Dirceu, por exemplo, afirmam que eles teriam sido condenados sem provas, ao arrepio da lei, com a marca da perseguição e a nítida intenção de criminalizar a atividade política, desvio maior de que são acusados Sergio Moro o a turma da Lava Jato.
É um debate complicado e pouco transparente, no qual falta respeito pelo sistema de Justiça. Muitos dos que defendem a Constituição são os primeiros a diminuir e colocar sob suspeita os tribunais inferiores. É uma contradição, que se explica menos por aspectos jurisprudenciais ou doutrinários e mais pelo clima belicoso em que nos encontramos. Não é correto que, para inocentar os políticos – com a justificativa de que só teriam cometido deslizes porque estavam fazendo política –, se ponha abaixo todo o sistema ou se desvalorizem os tribunais inferiores. Não é adequado, para o País, que a corrupção de que são acusados tenha de aguardar todos os recursos protelatórios e todas as sessões dos tribunais superiores, num cronograma que pode terminar em prescrição e decurso de prazos.
A Constituição é soberana, mas há algo mal posto no sistema.
O melhor seria que se pudesse rever a Constituição, ao menos neste capítulo específico do código penal e dos direitos fundamentais. Isso, porém, não acontecerá tão cedo. Faltam condições políticas e a correlação de forças poderia levar a que junto com tal revisão fossem descartadas, com mão de gato, várias outras garantias intrínsecas à ordem política e social.
Houvesse serenidade no País e seria possível chegar a um entendimento mais razoável: respeite-se a Constituição, mas não se a trate como algo que não pode ser interpretado e adequadamente traduzido. É preciso defender Carta Magna, mas ao mesmo tempo proteger as instituições da Justiça, dando a elas uma agilidade, uma justeza e uma transparência que as impeçam de transformar recursos, apelos e postergações em critérios para beneficiar os mais ricos e poderosos.
Tudo bem, analise perfeita, até chegar a esse final – verdadeiramente inconcluso:
“Houvesse serenidade no País e seria possível chegar a um entendimento mais razoável: RESPEITE-SE A CONSTITUIÇÃO mas (….) não se a trate como algo que não PODE SER INTERPRETADO e adequadamente traduzido. É preciso defender Carta Magna, mas ao mesmo tempo proteger as instituições da Justiça, dando a elas uma agilidade, uma justeza e uma transparência que as impeçam de transformar recursos, apelos e postergações em critérios para beneficiar os mais ricos e poderosos.”
Ora, o texto em abordagem trata da “presunção de inocência” x “trânsito em julgado”.
Não vejo problema em se declarar conclusivamente: após decisão (unânime) em segunda instância, falece a presunção de inocência. Restaria trânsito em julgado sobre o mérito. Só cabendo recurso sobre “dosimetria” ou algum vício processual. Qual a dificuldade??
Toda vez que ouço a expressão “trânsito em julgado”, me lembro do caso Pimenta Neves. Réu confesso de um homicídio torpe. praticamente não foi punido. Não existe perfeição para o que é feito pelo ser humano. Se não está de acordo com a realidade, deve ser revisto. Quanto à interpretação, se não é para que ela exista, então não se precisa de juízes: um bom “algorítimo” resolve o problema.