Nó tático, desentendimento e apatia democrática

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A troca das vestes presidenciais é um dado a ser considerado com atenção, mas não altera nem a correlação de forças, nem a conduta governamental.

Nas últimas semanas, como se estivesse a ouvir conselhos de bastidores, Bolsonaro passou da “guerra” à luta eleitoral. Não abandonou a primeira, mas passou a concentrar forças na segunda, da qual depende seu futuro. A Justiça fecha o cerco a sua família, pondo os filhos e parentes numa condição periclitante, soterrados por denúncias e evidências criminosas de todo tipo. É hora do chefe do clã recuar e do bruto abrir espaço para o político que calcula e busca a sobrevivência.

O presidente foi direto ao “centrão”, boia de salvação de tantos governantes necessitados de apoio parlamentar e dispostos a abrir as comportas do Estado. Faz o que sempre se fez, mas que ele, Bolsonaro, havia jurado não fazer. Foi também atrás do eleitorado mais pobre, dependente e generoso com os governantes de plantão. Acenou para ele com o auxílio emergencial e a repaginação do programa Bolsa Família, dando a ambos tratamento abertamente assistencialista.

A troca das vestes presidenciais é um dado a ser considerado com atenção, mas não altera nem a correlação de forças, nem a conduta governamental. O País continua à deriva, sem governo. O que estava ruim permaneceu. Bolsonaro rasga diariamente, em público, a decência e a responsabilidade, expondo o Estado brasileiro a um terremoto de vastas proporções, que compromete e corrói a vida de milhões de brasileiros. Mas até agora parece imune aos efeitos que esse desastre provoca na sociedade.

É o caso de perguntar onde estão os democratas, os liberais, os socialdemocratas e os de esquerda, se quisermos insistir na distinção. A falta de iniciativa deles fere e veta o futuro. Não é que não estejam a falar, a escrever e a pregar. O problema é que não estão a agir: batem à porta sem vontade de ingressar no campo das soluções. A crise é grave demais, mas eles permanecem pisando em ovos, sem atentar para a desgraça que já despontou e que, a partir de agora, se nada for feito, só tenderá a aumentar.

A pandemia agravou tudo, mas a crise é mais que crise de governo e crise sanitária. Passa por elas, mas desemboca numa crise de tipo estrutural, que problematiza a reprodução do capitalismo e de seus projetos, como o moribundo neoliberalismo. Enquanto essa crise se estende no tempo, faltam políticas públicas de qualidade democrática e social, capazes de proteger os cidadãos, os mais pobres e excluídos sobretudo. No Brasil em particular, o governo está entregue a pessoas padrão Weintraub, que fugiu do País depois de ter dizimado a educação, Ricardo Salles, que menospreza a dimensão ambiental da nacionalidade, e Ernesto Araújo, que continua a expor o País a uma condição internacional ridícula e subalterna. A Saúde Pública vive do sacrifício de seus profissionais, que se deparam com carências e insuficiências de todo tipo, que põem em xeque o SUS. A economia está abandonada à própria sorte, o que leva por um lado à afirmação unilateral do mercado e, por outro, à opressão sobre as pequenas e médias empresas, com seus trabalhadores.

O fato, duro de ser assimilado, é que os democratas brasileiros foram engolfados por um nó tático. Sabe-se do que se trata: um esquema de jogo (uma tática) que imobiliza o adversário a ponto de não deixá-lo respirar. Vale para o futebol e vale para a política. Na situação atual, é como se os adversários de Bolsonaro tivessem perdido a coragem e estivessem sem rumo, sem saber o que fazer, por onde caminhar. O reacionarismo se afirma, por sobre os despojos da democratização.

Os partidos políticos não existem como seres ativos. Todos eles. Seus integrantes decidiram “ficar em casa”, ou seja, nos espaços virtuais do Congresso, onde imperam a cautela extremada, a cegueira programática, a conveniência. Não mobilizam ninguém, nada propõem, limitam-se, no melhor dos casos, a bater na “situação”. Sobra retórica, escasseia o sentido de urgência. Apostam na judicialização da política, torcendo para que o STF faça o que eles deveriam fazer, para que a PGR denuncie o presidente pelos crimes sequenciais que vem cometendo. Os coletivos da sociedade civil estão paralisados pela quarentena e pela carência de ideias.

Que Forças Armadas são as brasileiras, que assistem impávidas a que generais de quatro estrelas compareçam à Justiça como testemunhas e mentem com a maior cara dura, escudando-se na manjadíssima escapatória do “não me lembro” e na reinterpretação maliciosa de frases e intenções? Apresentam-se como moderadores dos excessos presidenciais, mas na verdade estão a se revelar verdadeiros aduladores irresponsáveis. Pouco adianta baterem no peito em nome da “Pátria”, recordarem glórias da corporação que integram, lustrarem suas medalhas e seus galardões. O papel que estão a representar na política prática desmente tudo isso.

A sensação é de que está tudo dominado. A esculhambação se generalizou, já não há quem se disponha, no Planalto, a carregar o facho da razão.

O vice-presidente Hamilton Mourão, ele também um general tarimbado, tem reconhecido a gravidade da crise mas a atribui a vetores que inocentam o centro decisório. O incêndio se alastra, segundo ele, porque a polarização é excessiva, a imprensa radicaliza e toma partido, a federação não funciona. Pensa que a crise não é insuperável “desde que haja um mínimo de sensibilidade das mais altas autoridades do País”. E nada mais disse, nem lhe foi perguntado.

Sobram os ministros do STF, que até agora têm funcionado como freio às taras autoritárias do Executivo. Mas eles também têm seus limites, suas idiossincrasias, seus perrengues internos, suas disputas. Judicializar a política pode até habitar o íntimo de cada um deles, mas não é de acreditar que atravessarão o Rubicão. Se o fizerem, posto que nada pode ser sumariamente descartado, será uma boa solução? Agirão apoiados na Constituição, ou na interpretação que fizerem dela, mas não necessariamente produzirão democracia. Essa, salvo melhor juízo, passa pelos políticos.

O nó tático desorganizou o que estava precariamente organizado. Em vez de se unirem, os democratas se dividem ainda mais. Acuados, mastigam as culpas pelos erros que cometeram, quiçá envergonhados. Não agridem, não chutam a gol. Nem sequer demonstram acreditar que a defesa é o melhor ataque. Estão perdendo de goleada, até agora.


 

Versão inicial publicada na revista eletrônica Será?, Maio 15, 2020.

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