Estamos carentes de uma explicação abrangente da sociedade atual.
Para desafios complexos, uma teoria da complexidade é indispensável. Precisamos infletir sobre o todo, abraçá-lo. Mas os paradigmas vigentes são a hiperespecialização de um lado, o fanatismo negacionista de outro. Ambas as vertentes desarmam o pensamento crítico, levando a que se vejam paisagens na neblina, pedaços imprecisos do real.
Parte importante da dificuldade deve-se a estarmos em uma megatransição, saindo da vida apoiada em instituições estáveis e em rotinas disciplinares bem estabelecidas – na família, na escola, no trabalho – para uma a vida mais líquida, veloz, instável, sobrecarregada de riscos e incertezas, na qual “tudo o que é sólido se dissolve no ar” em questão de dias.
Achar que éramos felizes antes é uma nostalgia paralisante. Não viveremos mais como nossos pais, se é que algum dia vivemos. Continuaremos a repetir alguns de seus hábitos e atitudes, a ser influenciados por sua convivência e por sua memória, mas o futuro seguirá outros caminhos.
A megatransição subverte o modo como trabalhamos e vivemos, como nos relacionamos, nos organizamos e fazemos política, como pensamos e estudamos. Inutiliza os mapas antigos, os discursos codificados, as práticas cristalizadas. Mas no dia-a-dia tendemos a buscar refúgio naquilo que conhecemos e terminamos por não saber em que terreno pisamos. Fugimos da realidade que não compreendemos. O negacionismo é parte disso, impulsionado pela ignorância anticientífica.
Explicações simplistas, “analógicas”, orientadas por doutrinas congeladas, colidem com a complexidade do real, mas nem por isso são abandonadas. Funcionam como fotos em preto-e-branco num ambiente multicolorido.
As dificuldades inerentes a essa transição – adaptação, insegurança, assimilação – combinam-se com crises desastrosas, que se interpenetram e ampliam a crise do modo de produção capitalista. A pandemia explicitou uma crise sanitária de vastas proporções. Há a crise do emprego e do trabalho, que desestrutura, desprotege e rouba identidades, embaralhando sindicatos e movimentos associativos. A crise climática e ambiental está aí, desafiadora. Há a crise da democracia representativa e dos partidos políticos, que também é uma crise da política. Há uma crise de paradigmas, que nos tira o foco da totalização e nos deixa com mais dificuldades de pensar, de escolher, de explicar o mundo. A abundância de informações distrai e estressa.
No Brasil, o passado lateja forte. O País se modernizou, mas não o suficiente para se soltar das estruturas tradicionais. Perdemos uma oportunidade durante o ciclo de ouro da social-democracia à brasileira, entre 1995 e 2010. “Passado”, aqui, é uma metáfora com múltiplos significados: a desigualdade, a miséria, a falta de saneamento, o desmatamento selvagem, o sistema escolar ruim, a economia de baixa produtividade, o racismo estrutural, o autoritarismo mal disfarçado, o Estado pouco eficiente, a escassez de estadistas e lideranças democráticas. Tudo isso sustenta o reacionarismo prevalecente.
Temos um governo que fracassa em termos de gestão, mas se apresenta como um porto seguro retórico que ilude e bloqueia o entendimento da realidade. Nega todas as crises, que, se não são por ele geradas, têm nele um fator de propulsão. Seu plano é criar confusão permanente, dentro e fora do País, intoxicando a população com palavras de ordem grotescamente nacionalistas e assustando investidores.
Desgasta-se, assim, o que há de cultura democrática nos brasileiros, que são desestimulados de participar civicamente da vida coletiva. Uma imagem de País vai pelo ralo.
Viver em redes tem significado viver com mais dispersão e menos diálogo. A sociabilidade digital não conseguiu, até agora, expandir as interações democráticas. Desloca as pessoas para guetos autossuficientes, em que vicejam superficialidades, boatos e mentiras, em que cada um fixa sua bandeira à espera de aplausos. Os manipuladores deitam e rolam. Perde-se a motivação para dialogar com os diferentes. A política sangra. Viramos prisioneiros da nossa própria individualidade.
Será preciso um enorme esforço para reerguer o movimento liberal-social-democrático.
Protagonizamos uma incompletude: nossa democratização não se estabeleceu de fato, não se concluiu, por mais que tenhamos avançado. A sociedade não a digeriu, não a incorporou a seu DNA. Jamais nos desgarramos das bases do retrocesso. A “Constituição cidadã”, uma conquista democrática, não chegou a ser propriamente assimilada pelos diversos interesses.
Não é só o governo retrógrado que perturba, nem somente o capitalismo, o desemprego e a desigualdade. Disputas estéreis dividem os democratas. Há muitos problemas em termos de valores, ideias e atitudes. Estamos sem perspectiva.
Lutar contra essa crise passa por dar murros em pontas de faca. Sangrar sem esmorecer. Resistir, hoje, significa antes de tudo não perder a trincheira do diálogo, da argumentação serena e generosa. Para reunir as forças.
Publicado em O Estado de S. Paulo, p. A2, 26/09/2020