O jornalista Leonardo Cazes elaborou uma reportagem para O Globo sobre Gramsci, os 80 anos de sua morte e a recepção de sua obra no Brasil. Como parte desta elaboração, me apresentou algumas questões, que respondi por escrito, como segue.
A reportagem foi publicada no dia 26/4/2017 no Segundo Caderno do jornal. Pode ser lida aqui.
É possível precisar o momento em que as ideias de Gramsci desembarcaram no Brasil? Muitas vezes as ideias de Gramsci são apontadas como importante para reorganização da esquerda no final da década de 1970, no início do processo de distensão política da ditadura militar.
Do ponto de vista editorial, as primeiras edições dos textos de Gramsci remontam aos anos 60, quando a Editora Civilização Brasileira publicou uma edição temática dos Cadernos do Cárcere. A edição circulou pouco e não repercutiu. Foi “atropelada” pelo endurecimento da ditadura de 1964. Só mais tarde, na segunda metade dos anos 1970, os escritos de Gramsci começaram a repercutir, primeiro na universidade e depois, aos poucos, no movimento social e na política. Mesmo na universidade, não houve uma explosão: Gramsci foi se disseminando gradualmente e ingressando pouco a pouco em áreas que não se imaginava tão receptiva a ele, como o Serviço Social e a Educação. Na Ciência Política, ele permaneceu quase sempre à margem, sendo aceito basicamente pelos marxistas e por teóricos mais atentos à história das ideias.
No movimento social e na política, Gramsci foi importante para atualizar o repertório dos democratas e da esquerda, ajudando-os a se renovar e a abandonar certas cláusulas de atuação. Importante, aqui, foi a contribuição que o marxismo gramsciano deu à adoção pela esquerda de uma concepção “processual” da reforma social, ou seja, de uma ideia de “revolução socialista” que se faria mediante processos de longo prazo e não de “explosões”. Isso impulsionou a passagem de praticamente todas as correntes de esquerda para o campo democrático e a luta eleitoral, com a qual se derrotou a ditadura nos anos 1980.
Sem o estímulo fornecido pela “plataforma” política e intelectual de Gramsci, é provável que a história da transição democrático tivesse sido diferente. Tanto pelos efeitos que produziu sobre a esquerda, como pelo que trouxe de oxigênio e sofisticação ao pensamento político democrático e às correntes mais avançadas do próprio liberalismo.
O legado de Gramsci, portanto, é imponente. Seria difícil imaginar outro intelectual que pudesse ter feito o que ele fez em termos da criação das condições culturais para a modernização do pensamento democrático e de esquerda.
Mas é importante lembrar que ideias não têm pernas e necessitam de sujeitos materiais para ganhar fôlego e se converterem em força cultural. Foram muitos os intelectuais que deram pernas a Gramsci, especialmente aqueles que foram chamados, à época, de “eurocomunistas”, que, em boa medida, ajudaram a repercutir no Brasil as novas orientações que estavam a ser adotadas pelos grandes partidos comunistas da Europa, sobretudo o PCI, mas também o PCF e o PCE. Ao menos durante uma parte do caminho, a difusão de Gramsci se fez junto com a renovação comunista que se processava na Europa Ocidental.
De que maneira o contexto político brasileiro neste período (final dos anos 1970, início dos 1980) influenciou a recepção das ideias de Gramsci? O filósofo italiano é um autor que permite interpretações bastante distintas e disputas. Isso também ocorreu no Brasil?
Naqueles anos, a esquerda ainda se dividia entre os que defendiam a luta política de massas e os que pensavam a derrota da ditadura como uma operação de “choque de classes”. Havia muita resistência ao pluralismo e ao valor intrínseco da democracia, em torno do qual não deveria haver disputas. O marxismo brasileiro também era raso, sobretudo na reflexão política. Tudo isso condicionou a recepção das ideias de Gramsci. Além do mais, Gramsci é um pensador marxista heterodoxo e de difícil assimilação, em decorrência da estrutura de seus textos. São coisas que fazem com que ele gere tantas controvérsias. Não foi diferente no Brasil. Ainda hoje, mesmo depois de tantos anos de difusão de Gramsci, não há uma leitura uníssona de seus textos. Ao lado das disputas teóricas e conceituais, há também muita instrumentalização política de Gramsci, muito manuseio político-partidário de suas ideias, o que seguramente complica tudo.
Organizar e traduzir os trabalhos de Gramsci, a parte mais significativa escrita na prisão, parece um desafio e tanto. Neste sentido, como o senhor vê a publicação do “Dicionário gramsciano”?
A edição brasileira dos Cadernos do Cárcere, empreendida por Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques, e da qual tive a possibilidade de participar, procurou facilitar a recepção de Gramsci pelos brasileiros, que careciam de uma apresentação rigorosa das anotações reunidas por ele na prisão. Adotou-se como critério o destaque dado pelo próprio Gramsci aos “cadernos especiais”, nos quais ele imaginava congregar os tópicos principais de suas reflexões.
Foi um desafio, mas creio que bem-sucedido. É uma edição brilhante, rigorosamente traduzida e apresentada, com notas esclarecedoras. Tanto que continua a ser reeditada seguidamente.
Mas faltava um texto básico de referência que ajudasse os leitores e estudiosos a se apropriar do léxico gramsciano e de sua elaboração conceitual. São muitos conceitos relevantes, que nem sempre puderam ser compreendidos de forma criteriosa, justamente por causa do modo como foram sendo recepcionados e processados. Alguns desses conceitos chegaram mesmo a ser banalizados e a perderem rigor, como foi o caso, para lembrar o mais famoso deles, do conceito de “sociedade civil”. Isso não ocorreu somente no Brasil, mas no mundo todo. O Dicionário Gramsciano, neste sentido, preenche um vazio e sua relevância é incomensurável. Tornou-se uma obra que colabora de maneira decisiva para que se alcance um tratamento mais adequado do pensamento de Gramsci.
O Brasil e o mundo vivem tempos turbulentos. De que maneira os conceitos estabelecidos por Gramsci ainda são úteis para compreender e refletir sobre o nosso tempo?
Não somente os conceitos, mas a perspectiva teórica de Gramsci (com os aprofundamentos que foram sendo incorporados ao longo dos anos) se mostra extremamente útil para a compreensão do nosso tempo. Ela indica, em especial, que não há como compreender o mundo capitalista como um fato corriqueiro, a ser abordado com a simplicidade das visões ideológicas, do esquematismo e do ardor da militância. O mundo “grande e terrível” que Gramsci viu a partir da prisão continua aí, provavelmente ainda maior e mais terrível. Não temos o fascismo dos anos 20 e 30, mas a complexidade do capitalismo global desafia toda e qualquer inteligência não-dialética, seja pela volúpia adquirida pelos mercados e pelas desigualdades que deles derivam, seja pelas ameaças que faz a conquistas sociais importantes, seja pela “desorganização” que está gerando no âmbito dos Estados e da política. É um mundo marcado pela insegurança e pela incerteza, no qual a ação política se mostra sempre mais importante mas não consegue fornecer diretrizes consistentes à dinâmica social e aos cidadãos. Uma época de “revolução passiva”, como diria Gramsci, na qual os fatos se afirmam sem direcionamento e a participação é intensa mas pouco produtiva. Nela, tornou-se decisivo buscar consensos e agir para criar na “sociedade civil” áreas de disputa por “hegemonia” (outro conceito gramsciano) que representem possibilidades efetivas de democratização, sem ameaças à liberdade e ao pluralismo, que são inerentes à modernidade atual.