Uma questão intriga as oposições ao governo Bolsonaro: ao dar relevância ao tema da corrupção na compra de vacinas e à prevaricação do presidente, a CPI do Senado corre o risco de perder o foco e ficar com um objeto impreciso? Estaria, com isso, promovendo uma espécie de “lavajatismo” parlamentar, que complica o que já era complicado e não ajuda a recuperar o sentido cívico da política?
A ideia é que a CPI estaria a fomentar a “antipolítica”, reforçando a imagem popular de que todo político é um ladrão em potencial. Por extensão, a ênfase nela ampliaria a percepção de que a democracia é uma espécie de engodo, que não entrega o que promete e estaria sempre ao alcance de populistas autoritários e malfeitores.
A CPI de fato ampliou muito o seu foco de origem. Hoje já não se sabe bem o que ela está a investigar: o modo como foi gerida a pandemia, a política de saúde desde o ano passado, a conduta criminosa do presidente, as redes de corrupção encrustadas no Ministério da Saúde, o papel do general Pazuello e de seu auxiliar Élcio Franco durante a pandemia.
É um novelo que pode se tornar interminável, e comprometer o desfecho das investigações. Além disso, quanto mais a temperatura sobe, mais difícil fica reunir os descontentes e promover um avanço unitário dos democratas.
Tudo isso é verdade, mas também é verdade que os fios desse novelo estão tão imbricados entre si que se tornou impossível tratar de um sem tratar de outro. Como discutir a política sanitária e a conduta presidencial de 2020 para cá sem incluir na discussão o tema da corrupção, ou mesmo a atuação quadrilhesca da família Bolsonaro, com suas “rachadinhas” e redes malignas? Esse último assunto não entrou na pauta, por fugir demais do foco original. Mas está ali, pulsando, pronto para ser enfrentado. O prolongamento no tempo da CPI trará mais temas à discussão e se a Comissão não for bem administrada – papel de Aziz, Renan e Randolphe — ela pode de fato se perder, ou melhor, não conseguir processar adequadamente as investigações e produzir um desfecho positivo.
A atribuição de práticas ilícitas e corruptas ao governo Bolsonaro é um poderoso instrumento de luta política, que não pode ser desperdiçado. Acentua o desgaste do presidente e lhe tira a bandeira da “nova política” e da pureza administrativa, pondo no lugar seu espírito efetivamente hostil à política. Não se trata de “lavajatismo”, de uma caça genérica a políticos e gestores corruptos, mas de um degrau que complementa o tratamento de outros problemas. Um degrau que deve ser galgado com inteligência e prudência, com clara perspectiva estratégica.
O tema da corrupção ainda está por ser processado corretamente pelo movimento democrático. Para salvar a política, não para aprofundar suas falhas e dificuldades. Para recuperá-la aos olhos da população, não para satanizá-la. A corrupção, afinal, não deve ser posta no centro da agenda democrática, no qual estão outros temas mais graves e prementes. Quanto mais for deslocada para lá, impondo uma lógica binária de bons e maus, maior será o prejuízo, maior será a tendência a que a luta política fique polarizada de modo igualmente binário e mesquinho, escorregando para a demagogia.
O segredo, aqui como alhures, está na capacidade de articulação. Lideranças articuladoras, com perfil de estadistas, não são abundantes entre nós. Temos um déficit gritante nesse ponto. Líderes menores ganham destaques tópicos em certas circunstâncias (como na CPI), mas não se mostram qualificados para dar os passos decisivos e agregar os descontentes de todos os matizes. Há também os que jogam parados, impulsionados pelas pesquisas de intenção de voto e pelos ventos benfazejos da Fortuna.
As oposições somente vencerão se alcançarem uma unificação que vá além das denúncias de corrupção, crimes de responsabilidade, má gestão, misoginia e negativismo. Ou seja, que inclua essas denúncias em um quadro mais amplo, mais generoso, sem personalismos e sem açodamento. A estrada está aberta, o adversário está meio grogue, é hora de se preparar para as grandes decisões.