O fim de semana de 2-3 de outubro foi de expectativas e reflexões. Milhares de pessoas foram às ruas, em inúmeras cidades, numa corrente que buscava reavivar e ampliar o “fora Bolsonaro”. Houve alguma ansiedade quanto ao alcance dos atos de protesto e o domingo foi dedicado a repercuti-los e analisá-los.
Um entendimento comum se fixou: os atos foram bons, mas poderiam ter sido melhores. Não porque não tenha sido expressivo o número de manifestantes, como se apressaram em clarinetar os bolsonaristas de plantão, mas sim porque os atos não representaram um passo firme rumo à articulação de uma frente política disposta a reorganizar o País a partir de 2023.
Antes de tudo, porque as manifestações não foram plurais o suficiente. Embora tenham sido convocadas por um encorpado leque de partidos – PT, PSOL, PSB, PDT, Cidadania, PCdoB, Solidariedade, Rede, PV –, elas não agregaram quem já não estivesse agregado. Movimentos sociais com bandeiras corporativas, muitos balões de organizações de esquerda com pouquíssima representatividade, uma presença predominante do PT, nada muito além disso. Massas mesmo, essas ficaram em casa, à espera de que algo novo apareça.
As agressões e hostilidades a Ciro Gomes, principal liderança política presente ao ato na Av. Paulista, mostraram que o pluralismo que se exibia no palanque não se desdobrava em atitudes plurais e tolerantes entre os manifestantes. Ficou evidente que havia uma fenda entre dirigentes e dirigidos. O retrato mostrava excesso de corporativismo – cada qual com sua bandeira – e de busca de espaços identitários, o que fez o ato exalar fragmentação. Ouvia-se sempre uma vaia aqui, um “Lula-lá” ali, poucas vozes em uníssono.
As agressões foram uma demonstração não só de intolerância e sectarismo, mas de burrice política, que deixou estampada, no verso das bandeiras tremulantes, a dificuldade de atuar unitariamente, de respeitar os que pensam de modo diferente. Provaram que não há somente um adversário a ameaçar a democracia, mas vários, o que significa que a oposição a Bolsonaro não sabe bem, ao menos por enquanto, para que lado atirar.
Em segundo lugar, os atos foram exclusivamente de esquerda. Nenhum problema haveria nisso, sendo a esquerda um importante protagonista do processo político, um conjunto de forças que têm ideias próprias, que desejam vocalizar. O problema é que os atos pretendiam anunciar uma “frente” anti-Bolsonaro, ou seja, algo que estaria muito além do que se costuma associar à esquerda. A própria convocação sugeria isso. No frigir dos ovos, porém, as pessoas, lideranças e organizações de centro, liberais, de centro-esquerda, não marcaram presença, talvez receosas da receptividade que teriam.
As esquerdas, sozinhas, não mostraram especial capacidade de mobilização. Pôde-se perceber que a população não se mobilizará com facilidade, ao menos enquanto não houver maior clareza quanto aos rumos a serem seguidos.
Afinal, os atos, até agora, nada apresentaram em termos de futuro, a não ser o desejo de extravasar indignação e derrotar Bolsonaro, coisa que, hoje, está na boca do povo. Se nada se oferece sobre o dia de amanhã, se não se proclama o valor de um pacto que tire o processo político da mesmice modorrenta, por que diabos as pessoas descerão às avenidas?
As perguntas fundamentais estão suspensas no ar: o que faremos depois que Bolsonaro se for? Como reconstruiremos e reorganizaremos o Brasil, após o pesadelo destrutivo que nos rouba vidas e sono? Com quem faremos isso, com quais ideias? A pegada vencedora poderá ser de esquerda ou dependerá da contribuição de tudo aquilo que está além e aquém da esquerda?
Não dá, evidentemente, para concluir que a articulação de uma frente política unitária, democrática e plural, foi perdida ou não tem mais possibilidades de nascer. Seria um equívoco pensar assim. A necessidade dessa articulação é uma imposição da realidade, em um País destroçado, estilhaçado em pedaços que mal se comunicam, sem foco reformador claro. Há forças subterrâneas impulsionando isso, muitas vezes em silêncio. Mas a realidade somente se impõe quando é politicamente traduzida e encontra pessoas dispostas a trabalhar em conjunto, com um programa factível, sem pretensões hegemonistas, inflamações voluntaristas e desvios populistas. E isso as manifestações do final de semana mostraram que ainda não se vislumbra no horizonte.
Os partidos que convocaram as manifestações desenharam um caminho a ser explorado. Puseram na mesa o desafio da articulação democrática suprapartidária. Houve adesões, à esquerda e à direita. E é de esperar que nos novos atos que se anunciam a confluência de forças seja mais expressiva e vigorosa. Se o Brasil não pode dispensar o que as esquerdas têm a oferecer, também está claro que somente as esquerdas não conseguirão reorganizar o País.
Uma eventual “terceira via” não é um meio caminho entre Lula e Bolsonaro, polarização essa que expressa uma reposição do atraso, uma opção entre o nada e a volta ao passado. Dificilmente ela se apresentará em torno de uma única candidatura, ou sob a forma de uma unidade em torno de Lula, dada sua dianteira na disputa. A dispersão de forças é uma possibilidade concreta. A “terceira via” que os democratas deveriam buscar teria de ser a tradução política de um programa de mudança substantiva, que altere as estruturas podres do Estado brasileiro, elimine a miséria vergonhosa, combata as desigualdades, recupere e modernize a economia, valorize as energias verdes e o meio ambiente, faça da educação uma missão cívica, republicana, dando-lhe prioridade estratégica.
Para fazer sentido e vencer, a “terceira via” precisará ser a proclamação de um pacto político dedicado a reinventar o Brasil. Com quem se dispuser a endossá-lo.