Não se deve forçar a ideia, pois há processos de longa duração em curso, mas se pode dizer que 2021 foi um ano de assimilações: incorporamos novos processos aos nossos cálculos existenciais. Recuperamos convicções que pareciam esquecidas. Com mais informação e melhor entendimento, distanciamo-nos da aceitação passiva dos problemas que nos desafiam.
A pandemia nos obrigou a retomar cuidados básicos e a lutar por uma vacinação que se projetou como principal via de escape, mas que foi rejeitada, banalizada e desprezada pelo governo federal. O sistema de saúde, com isso, perdeu articulação. Mas o SUS resistiu bravamente, as vacinas chegaram à população, juntamente com o uso de máscaras e a percepção da necessidade de uma vida social menos aglomerada. Ficamos cientes da importância de mecanismos de controle e vigilância sanitária, base de sistemas de proteção e combate a vírus e patógenos.
A assimilação não atingiu a todos. Houve quem seguiu a vida como se não houvesse amanhã. Negacionistas mantiveram-se ativos, a começar pelo presidente da República.
Houve imunização biológica, que nos protegeu da covid, mas perdemos em termos daquilo que o filósofo Peter Sloterdijk chama de “imunidade jurídica e solidária” e de “imunidade simbólica”. O governo Bolsonaro corroeu as defesas sociais em muitos terrenos, reduzindo nossa capacidade de sobrevivência comum e com dignidade.
A pandemia reforçou o home office, com repercussões intensas na família, no sindicalismo e na empregabilidade. Compras pela internet, delivery intensificado, trabalho precário e “empreendedorismo”, uma explosão de pequenos negócios e empresas de novo tipo. Parece improvável que se volte ao padrão anterior. O trabalho em casa ainda engatinha, mas já se fixou na escala de valores de trabalhadores e empresários, como aceitação da flexibilidade, do equilíbrio entre vida profissional e vida familiar, de atividades menos desgastantes, sem perda de produtividade.
Também tivemos de assimilar o governo Bolsonaro, com suas figuras toscas e sua permanente disposição de agredir e fazer tudo errado, confrontando a opinião pública, o bom senso e a segurança nacional. Perdemos um tempo enorme tentando decifrar a chegada à Presidência da República de um personagem desqualificado e envolto em trevas. Hoje compreendemos que, em 2018, uma inflexão de extrema direita pegou desatentos a população, a sociedade civil e os partidos políticos. Pagamos alto preço por isso.
Com o tempo, Bolsonaro tornou-se mais perigoso e deletério, mas assusta menos, como acontece quando nosso organismo assimila um veneno e passa a purgá-lo.
Perdemos algumas ilusões. Melhoramos a percepção de que o Brasil terá de suar sangue para ser um País no qual estejam debelados o poder irresponsável, a miséria, a fome, a desigualdade, a baixa produtividade, o Estado engessado. Demo-nos conta da extensão de nossos desertos, do vazio de lideranças públicas, de nossa gana por improvisações e desperdícios. Descobrimos que nossa imagem no mundo é muito ruim, antagônica aos arroubos patrioteiros internos, que flutuam como bandeiras tóxicas.
Compreendemos melhor o valor da democracia e, ao mesmo tempo, a dificuldade de fazer com que ela prevaleça. Construções democráticas são exercícios permanentes, que precisam ser repostos dia após dia. São processos difíceis, sujeitos à instabilidade e sempre combatidos pelos que pregam a autoridade tirânica, a ordem imposta pela violência, a disseminação de valores que intimidam e restringem a liberdade.
Luzes de esperança estão acesas, mas não surgiu uma proposição política e democrática maiúscula, que indique com clareza a rota a ser seguida para a recuperação do País. O bolsonarismo se decompõe e perde espaço, há bons postulantes democráticos à Presidência, mas faltam articulação, diálogo horizontal, cooperação. Navegamos sem mapa, em um tempo de urgências.
Sem luta paciente, esforço coletivo e determinação cívica, o buraco permanecerá a nos engolir. Os políticos precisarão assumir suas responsabilidades, mas a população e a sociedade civil também terão de atuar com vigor, exigindo propostas de qualidade e programas factíveis.
2021 foi um ano de transição, assim como havia sido 2020. Há perigos por todos os lados, oportunidades que se abrem e se fecham. Estamos aprendendo a viver sob pressão. Novos abismos se anunciam e ainda não dispomos das pontes para atravessá-los.
A entrada em uma nova era mexe com estruturas existenciais, estados de espírito e convicções. Gera medo e insegurança. Temos de processar o que perdemos e o que ficou para trás. Destroços precisam ser assimilados, compreendidos, incorporados a novas dinâmicas. O que houve de conquistas e avanços também. O meio ambiente conhece a destruição acelerada das reservas naturais e, de abrigo da vida, está sendo convertido em hospedeiro de desgraças e doenças. A agenda do futuro terá de destacar as pautas ambientais, a sustentabilidade econômica, a eliminação das desigualdades obscenas.
Não é um cenário otimista. Mas é em situações de dificuldade que a capacidade de reação dos humanos se manifesta, como luta pela vida, pela liberdade, pela democracia.
Boas-festas e um feliz 2022 para todos.
Publicado em O Estado de S. Paulo, 25/12/2021, p. A2.