As transições que nos desafiam

Marysia Portinari. The flame nebula bright cluster stars. Óleo sobre tela.
Marysia Portinari. The flame nebula bright cluster stars. Óleo sobre tela.
A melhor chance de sucesso do governo Lula está no fortalecimento da coalização democrática que o apoiou nas urnas do segundo turno

Não se fala de outra coisa. Todos querem saber como passaremos do governo Bolsonaro para o governo Lula. É compreensível. Motores potentes turbinam o evento: o espetáculo em si, a disputa por espaços políticos, a composição ministerial, a ansiedade.

O novo governo está recebendo dados e ideias. O desenho é para que tudo dê certo. Mas até as pedras sabem que nada será fácil ou tranquilo.

Antes de tudo, porque já não se vive mais nos anos dos primeiros governos petistas. Nem na economia, nem na política e na cultura. A época problematiza a democracia no mundo. Partidos não funcionam mais como antes. Políticos estão sendo substituídos por “engenheiros do caos”. Uma guerra cultural permanente fomenta uma versão não liberal e autoritária de governo, impulsionada por agitadores, mídias de opinião, redes de desinformação. Busca-se criar instabilidade e deslegitimar governos, explorando o que há de declínio da confiança social na política e na democracia. O trumpismo se liga ao bolsonarismo, que se liga ao putinismo, ao orbanismo, a formas variadas de negacionismo, de antiglobalismo, de ataques ao progressismo.

No Brasil, este clima reverbera com intensidade. Desde a proclamação dos resultados eleitorais, o País assiste a manobras para criar incerteza e desafiar Lula. Há fumaça golpista no ar. Como se delineia um poder democrático, a tensão será inevitável. E terá de ser administrada.

Sairemos de uma responsabilidade fiscal sem dimensão social para uma responsabilidade social com dimensão fiscal. Não é pouca coisa, haja vista a celeuma sempre que se toca no tema. A busca de uma âncora que regule a relação entre arrecadação, gastos e dívidas parece estar no horizonte do novo governo. Mas até agora não se sabe qual será ela. Não há consenso nem sequer entre os principais economistas da equipe de transição. Sem convergência, os riscos subirão ao palco.

O governo Lula terá de construir estabilidade política e segurança institucional para não desandar. Para privilegiar o social, precisará acertar na economia, fazendo concessões ao “mercado” e à “austeridade fiscal”.

Eleito com o apoio decisivo de forças de centro-esquerda, o governo precisará lidar com a tentação petista de hegemonizá-lo, via inserção generalizada de quadros partidários nos diversos escalões ministeriais. O governo Lula não poderá ser do PT. Sua melhor chance de sucesso é ser um governo de coalizão, plural e aberto a diversos partidos, no qual os espaços políticos sejam efetivamente compartilhados, não trocados por votos. Tal opção expressará melhor o resultado das urnas e dará maior flexibilidade, musculatura e legitimidade ao governo. Como Lula se dispõe a carregar o mundo nas costas, a realizar um programa de fôlego e impacto, precisará de múltiplos apoios.

Erros e apetites desmesurados na formação do ministério, por exemplo, criarão animosidades e atritos, complicando a coordenação técnico-política e tensionando as relações Executivo-Legislativo.

O novo governo nascerá juntamente com um Congresso que não lhe é favorável. Há muitos senadores e deputados que farão oposição pela direita. Há o Centrão fisiológico, que venderá caro cada voto em favor do governo. O problema já está na mesa, pois o novo governo precisará ajustar o Orçamento agora, para manter o Bolsa Família. Nem sequer tomou posse, mas já trava um braço de ferro com o atual Congresso, do qual depende. A coligação que elegeu Lula não é majoritária nem no Senado nem na Câmara, mas pode ser reforçada com a incorporação dos partidos que o apoiaram no segundo turno, o que ainda não foi tentado.

Um governo impulsionado pela democracia social está eticamente impossibilitado de aceitar “orçamentos secretos”, nem mesmo para conseguir aprovar a PEC da Transição, como vem sendo cogitado. Também não poderá se entregar aos esquemas de Arthur Lira para permanecer na presidência da Câmara. Manobras desse tipo podem viabilizar os primeiros passos do governo, mas terminarão por enredá-lo no jogo perverso do fisiologismo.

Assimilar isso politicamente será mais fácil com o fortalecimento da articulação que elegeu Lula. Sem ela, o governo se enfraquecerá e a democracia voltará a correr riscos. Uma boa política, com bons operadores, é a chave para que se cumpra o que foi prometido.

Lula não fará um governo de esquerda, com reformas estruturais impetuosas. A linguagem do poder mudará. A renda será mais bem distribuída. Haverá mais justiça, mais saúde e educação. Mas tudo virá de modo incremental, aos poucos, à base de negociações e entendimentos. Combate à fome e à exclusão social, educação e saúde, sustentabilidade e proteção ambiental, crescimento e emprego são metas nobres, indispensáveis, de interesse geral da Nação. Não são revolucionárias.

Quando chegar 2023, teremos um novo governo. Passadas as comemorações, será a hora de arregaçar as mangas. Sem palanques, sem fervor ideológico e sem disputas estéreis. Ou seja, de forma positiva. Somente assim o País transitará para o futuro.


Publicado em O Estado de S. Paulo, 26/11/2022, p. A14.

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