Os réus, o STF, a política

Go Yayanagi. Kaleidoscope. Serigrafia
Go Yayanagi. Kaleidoscope. Serigrafia
Aos democratas, a conversão dos conspiradores bolsonaristas em réus é uma oportunidade para que se reúnam para oferecer ideias ao País.

Não é provável que se ´possa evitar, mas o melhor para a democracia brasileira seria que a conversão em réus de Jair Bolsonaro e seus conspiradores não fosse usada para incrementar a polarização que já devasta o País.

É difícil imaginar um cenário despolitizado orque os crimes cometidos são de natureza escancaradamente política. Deles participaram ministros de Estado e militares de alta patente, houve planejamento e fez-se uso de posições de poder para pavimentar o terreno golpista. Tudo é político: tentativa de golpe de Estado, organização criminosa, ataques contumazes ao estado de Direito, desferidos ao longo de um mandato presidencial pouco democrático e, a partir de 2021, materializados em manifestações de forte teor golpista. Dada a exasperação prevalecente, fundada em afetos e fantasias, é impossível que os trâmites legais se mantenham no ambiente reservado do STF e não contaminem a opinião pública e a sociedade civil. Além do mais, os atores principais — governo e oposição — já estão em campo para explorar a questão.

Algumas coisas devem ser consideradas.

A primeira é a instrumentalização política do fato, coisa que desde logo está posta na mesa. As primeiras reações foram “festivas” e sarcásticas, com memes proliferando nas redes e encontros de comemoração entre militantes antibolsonaristas e petistas. Fazem parte do jeito brasileiro de ser, e não podem ser condenadas de antemão.

As comemorações, porém, precisam arrefecer com o passar dos dias. Afinal, Bolsonaro será julgado em um processo que se estenderá no tempo. Está denunciado como réu e sua condenação está em aberto. Pode-se antever que o bolsonarismo não irá com ele ao cadafalso: sobreviverá como estado de espírito, como cultura política, como expressão viva de uma nova “(des)ordem” política e social. O próprio Bolsonaro tomou a dianteira no pronunciamento que fez após a sessão da Primeira Turma, ao sugerir que é um “perseguido pela Justiça”, uma “vítima do sistema”, um inocente, alegações que, por certo, mobilizam uma população como a brasileira.

Há que se manter o foco, portanto, naquilo que importa: cicatrizar feridas, cauterizar os vasos que ainda vertem sangue, organizar um governo que ofereça perspectivas consistentes à sociedade, unificar os democratas.

Um segundo ponto é a conduta do STF, que, como disse o editorial do Estadão de 27/03, “não tem o direito de errar”, comprometido que está com a Constituição de 1988.  O julgamento “deve ser imaculado do ponto de vista processual”. Isso significa responsabilidade e imparcialidade, bem como critério na dosimetria e na atribuição das penas. Nada de jogar para a plateia ou menosprezar as chicanas da defesa. Será inconveniente e inadequado, por exemplo, se os ministros julgadores adotarem uma “narrativa” que force a mão na concatenação dos fatos para desse modo desembocar no vislumbre de um processo golpista explicitado com clareza ofuscante.

A conduta do STF será decisiva para que o julgamento represente uma “página virada” na história nacional. Ela não poderá nem criar frustrações e decepções entre os democratas — esteio moral do Estado democrático –, nem passar para os seguidores de Bolsonaro a sensação de parcialidade. Caminhar sobre o fio da navalha, ater-se aos autos e à letra fria da lei. Sem agradar ou desagradar ninguém. Tarefas difíceis, sobretudo se se considerar que o próprio STF esteve sempre no centro das tramoias golpistas, que previam até mesmo a eliminação de alguns de seus integrantes. A paixão pela preservação institucional da Corte e pela integridade de seus integrantes estará sempre à flor da pele, a exigir esforços de moderação e comedimento.

O terceiro ponto é a conduta do governo Lula. Será péssimo se ele enveredar pela trilha da politização revanchista, mantendo na sua comunicação a exploração do que se está a julgar. O governo deve governar sem se imiscuir no processo legal ou se antecipar no julgamento dos acusados. Não é fingir de morto, como se aquilo que transcorre no STF fosse pouco importante para o País. Mas é manter o leme na direção certa: governar, gerir a máquina pública, negociar com o Congresso para “pacificá-lo” e convertê-lo em parceiro institucional.

O governo não está em um bom momento. Faltam-lhe atributos programáticos e bons articuladores. Sua base social já não é mais a mesma de antes e seus adversários são mais fortes. Vão além do político em sentido estrito: ligam-se aos monopólios informacionais, à extrema direita que cresce no mundo, a uma sociedade em plena transformação, quase que virada de pernas para o ar. Qualquer governo precisa aprender a se movimentar nesse ambiente, descartando antigas convicções e ousando abraçar o novo.

Aos democratas em sentido amplo, a conversão dos conspiradores em réus oferece uma oportunidade a mais para que se reconciliem com o ativismo e se reúnam para oferecer ideias ao País. Não contribuirão se permanecerem como estão hoje, desarticulados e inermes, sem dialogar com a população e sem demarcar território.

Os próximos meses serão um laboratório para que se explorem os caminhos que se abrirão para a sociedade brasileira.


Publicado em O Estado de S. Paulo, 29/03/2025, p. 6A.

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