Em termos pessoais, o divisor de águas apareceu em 1979, ano da longa greve dos funcionários públicos em São Paulo.
A greve foi dirigida por um Comitê Unificado sediado na capital. Tornei-me um dos representantes da UNESP neste Comitê, juntamente com meu amigo e colega Nilo Odália. A greve duraria dois meses e acabaria por se tornar, a cada dia, mais complicada e desgastante: passaria a exigir, em suma, maior capacidade de análise e de direção política. Foi nesse momento que “meu” grupo emergiu no Comitê. Seus componentes eram basicamente médicos, liderados por David Capistrano Filho. Encarnavam, em escala micro, o “partido revolucionário” que eu conhecia dos livros e das conversas.
Eu e alguns amigos já estávamos conversando há tempo sobre o engajamento partidário e o PCB. Com Gildo Marçal Brandão, havíamos encontrado David Capistrano Filho, trocado ideias, analisado a situação geral. Tudo avançava devagar. Pisávamos em ovos. David tinha acabado de sair da cadeia. Todos tinham uma vida profissional para tocar.
A greve de 1979 acelerou tudo, fez com que algumas coisas transbordassem. A passagem para a militância partidária foi rápida, em nome de um programa empolgante: agregar e reunir os comunistas dispersos pela repressão, ajudar a dar direção à frente contra a ditadura, marcar presença na movimentação política, associativa e cultural que crescia, organizar um jornal que chegasse legalmente às ruas e servisse de referência e orientação.
Foi impossível resistir àqueles apelos. E entre 1979 e 1982, como integrante da direção do PCB que então lutava para emergir na vida pública, tornei-me um “homem de partido”, uma espécie de “comissário cultural”, encarregado de contatar intelectuais, redigir manifestos, textos e documentos, participar de eventos vários.
Aqueles foram anos que não se esquecem jamais. Foi como se eu tivesse me posto em contato com a história viva do País, que pulara fora dos livros e se mostrava por inteiro, com suas virtudes e suas deficiências. Conheci a velha guarda comunista, os militantes incógnitos, os dirigentes sindicais combativos e os pelegos, os intelectuais antigos e os novos, os conhecidos e os desconhecidos, os grandes “mitos” como Prestes, Armênio Guedes e Giocondo Dias. Falei para plateias que jamais imaginei estarem ao meu alcance. Corri o Brasil. Ganhei outro sentido para a vida e para o trabalho. Empenhava-me full time. Em algumas semanas, de tanto viajar, não sabia em que cidade acordava. Fiz tudo isso sem deixar de ir a Araraquara, à UNESP, dar aulas. Ficava por lá dois ou três dias por semana. Na ida ou no retorno, parava em São Carlos, para fazer contatos.
Em 1979, começaram os preparativos para a publicação de um semanário comunista. Em março de 1980 saiu o primeiro número de Voz da Unidade, e eu estava entre os editores, em um Conselho de Orientação Editorial de que participavam Gildo Marçal Brandão (editor-chefe), Armênio Guedes e representantes do Comitê Central do partido. Na festa de lançamento do jornal, fui encarregado de fazer o discurso principal, em nome da redação, diante de milhares de pessoas que foram patrocinar o evento. Mais tarde, entre 1981 e 1982, eu me tornaria editor-chefe do jornal durante um ano.
Nossa posição em São Paulo era que a legalização do partido precisava ser afirmada claramente, com força, em termos públicos. Criamos, para tanto, creio que no início de 1980, a Comissão Paulista pela Legalização do PCB e nela inserimos os integrantes da Executiva estadual do partido. Estávamos eu, David Capistrano Filho, Marco Moro, João Guilherme Vargas Neto, Ubiratan de Paula Santos. Passamos a atuar em nome desta Comissão. O mesmo expediente seria utilizado pelo Comitê Central mais tarde, no final de 1984.
Voz da Unidade condensa bem essa fase. Nos dois anos em que atuei no jornal, pude fazer de tudo: política, jornalismo, agitação cultural. Escrevi intensamente. Conheci de perto, também, o fator “luta interna” no PCB. Até hoje me interrogo a respeito das razões que levaram aquele processo de reconstrução organizacional a derivar para a deterioração e, aos poucos, para a inviabilização. Os choques entre a direção estadual paulista e o Comitê Central do partido, que então voltava do exílio, tiveram poucos elementos substantivos, poucas razões políticas claras e irreversíveis. Contiveram, ao contrário, muito de disputa por poder: uma “ala jovem”, disposta à renovação e à edificação de uma política de esquerda mais moderna, contrapôs-se à tradição partidária, que, zelosa de seus méritos e direitos, não se mostrava disposta a negociar uma transição. Os “prestistas” brigavam com os “realistas” do Comitê Central e com os “eurocomunistas” que, por sua vez, também eram contrários aos “realistas”. Prestes, com o tempo, terminaria por ser expulso do partido e nós, os “euro”, fomos sendo ultrapassados pela atuação nacional da direção, que mostrava maior capacidade de agregação dos diferentes focos de militantes que existiam no país.
A dinâmica do processo de redemocratização, com suas dificuldades e contradições, faria o restante do trabalho, ao objetivar diferenças de agenda, de encaminhamento, de orientação.
Um bom exemplo do teor da luta interna foi a “Carta aos comunistas” divulgada por Luís Carlos Prestes em março de 1980. Os termos eram bombásticos, repunham em circulação os mesmos jargões surrados que nós, em São Paulo, considerávamos um desserviço. Prestes denunciava a falência dos dirigentes partidários, que não só estavam “alienados da realidade brasileira” como teriam sido responsáveis pelas prisões dos militantes comunistas entre 1974-1975 e eram incapazes de realizar o “princípio da direção coletiva” e a “democracia interna”. A Carta chegava a denunciar os dirigentes por terem convertido o partido em um “instrumento dócil para legitimar o regime” e funcionar como “freio dos movimentos populares, fiador de um pacto com a burguesia, em que sejam sacrificados os interesses e as aspirações dos trabalhadores”. De modo peremptório, Prestes acrescentava: “Não posso admitir que meu nome continue a ser usado para dar cobertura a uma falsa unidade, há muito inexistente. Reconhecendo que sou o principal responsável pela atual situação a que chegaram o PCB e sua direção, assumo a responsabilidade de denunciá-la a todos os companheiros, apelando para que tomem os destinos do movimento comunista em suas mãos.” E completava: “Vejo a luta pela democracia em nossa terra como parte integrante da luta pelo socialismo”, insistindo em um programa que incluía em lugar de destaque “a liquidação do poder dos monopólios nacionais e estrangeiros e do latifúndio”.
Era uma situação plena de efeitos desagregadores. Prestes valia-se de seu prestígio mítico para tentar sensibilizar os comunistas e criar fatos. Quando ele voltou ao Brasil, em 1979, o convidamos para vir a São Paulo e fizemos um debate público com ele, que eu coordenei, na Associação dos Servidores do HC, em Pinheiros. Depois, quando a crise se aprofundou, integrei uma pequena comissão que foi ao Rio de Janeiro tentar demovê-lo da ruptura. Nada deu resultado.
No final de 1982, era-me claro que se esgotara a ideia de ter um partido comunista à moda antiga (leninista, centralizado, unitário) e qualificado para disputar a hegemonia na esquerda brasileira. Naquele ano, em dezembro (no dia do meu aniversário), fomos todos presos na Praça Dom José Gaspar, centro de São Paulo, no momento mesmo em que cerca de 100 representantes de todo o país iniciavam os trabalhos do VII Congresso Nacional do PCB. Ficamos duas noites na Polícia Federal, fui processado e julgado, alguns anos depois, quando eu já tinha ido e voltado da Itália.
A luta interna aflorara com toda a virulência durante a preparação do Congresso. Atingiria em cheio a redação da Voz da Unidade. A direção estadual paulista se afastou, entregando ao Comitê Central todo o trabalho redacional. O jornal continuou a ser feito e permaneceu cumprindo uma função. Persistiu por onze anos, até 1991. Terminou por ser engolido pelo mesmo processo que levou ao fim do PCB.
Foi uma luta interna específica, algo diferente dos processos que afetam todos as organizações partidárias. Ali se misturaram diferenças de orientação, de geração e, sobretudo, de entendimento de como se poderia construir um partido que vivera longas décadas na clandestinidade e que, ao se reencontrar, não saberia administrar bem as pretensões dos que haviam ficado no país e dos que viveram no exílio. O Comitê Central, todo composto de exilados que retornavam, iria entrar em conflito com o Comitê Estadual de São Paulo e com outros núcleos comunistas que tentavam a reorganização a partir de dentro. Foi um momento difícil, potencializado pelas mudanças que se verificavam na vida nacional, na estrutura de classes, nas predisposições do operariado, na busca que se fazia por novos caminhos, de que o PT seria a prova maior. O velho partido não conseguiria gerenciar tudo aquilo.
Em 8 de maio de 1985, o PCB voltou à legalidade. Seria extinto em janeiro de 1992, substituído pelo Partido Popular Socialista (PPS). Um processo carregado de sofrimento, tensão e discórdia, que encerrou uma etapa da luta política no Brasil.
Da minha parte, tornei-me um comunista democrático e sem partido.
Marcos
Estávamos em casa conversando sobre política e lembrei de você como professor meu professor em 84 em Araraquara e agora meu filho está lá.comentavamos sobre o jornal voz da unidade e a revista plural derrepente tive essa lembrança das relações polícia do pcb aqui em Piracicaba junto com Gadelha, abraço.
Bons tempos aquele João! Bom saber do teu filho e de vc. Abraço
Caríssimo professor Marco Aurélio Nogueira, não lhe parece, diante do gigantismo que envolve uma reforma política abrangente, como a objetivada em sua palestra, que seria um bom começo acabarmos com o foro privilegiado, o financiamento de campanhas e, do mesmo modo, o fundo sindical que, na circunstância em que está posto, influi e compromete, diretamente a atividade político partidária, deixando a grande reforma para um futuro próximo, já beneficiado pelo expurgo natural que tais providências implementaria?
Muito apreciaria se nos satisfizesse a curiosidade colaborativa.
Reformas políticas são sempre controvertidas e, de antemão, nenhuma delas pode provar os efeitos que se espera. Os pontos que vc apresenta são interessantes e penso que se poderia fazer um ensaio com eles no curto prazo. O financiamento de campanhas já não existe e o fundo que se pretende criar talvez nem venha a ser aprovado. A contribuição sindical também já está em vias de ser eliminada. A atividade partidária ganha qualidade na medida em que os integrantes e os dirigentes dos partidos mostrarem cultura política democrática e partidária. Não acredito que mudanças na legislação levem os partidos a funcionar melhor em termos de representação e seriedade programática.
OLA MARCO… sinto me representada, como se diz agora, pelo seu artigo. bjs
Feliz por saber disso, Florianita. Aqueles foram anos muito dinâmicos, quase épicos. E fizemos parte deles. Beijo
Fui militante do pc em sampa e após 1974 no Paraná, assim como meu querido e saudoso pai, Moacyr Reis Ferraz, Wilson previdi, Júlio Cezar Soares, Haidê yamaguti de Melo, o também saudoso fagundes (Francisco Luiz de França), seus filhos Vladimir, valney, Cosme e suas filhas, que no momento não me ocorre o nome,líamos e
distribuíamos o jornal voz da unidade na clandestinidade foi uma época difícil, porém vivíamos como uma grande família, acolhem os em nossa casa Diogo Afonso Gimenez um sindicalista foragido de sampa ,acolhem os tbm expedito da Rocha,tbm sindicalista,escultor e um grande camarada, e os agregamos à nossa grande é harmoniosa família, sofremos muito quando caiu o Diogo e fomos caindo um a um nas mãos da repressão. Em 1985 o pcb veio à legalidade e esta grande família começou à se afastar., hoje como muitos me considero um comunista mais ou menos integrado ao pt.