Muito auê e muita discussão sobre o “Vai malandra” da Anitta. Como sempre, tribos se formam e se engalfinham numa guerra generalizada. O clip está bombando, o que excita ainda mais.
Há nele muito de um factoide típico da nossa era líquida, uma torção sofrida pela cultura pop, que sempre soube explorar/representar/expressar o que repousa no imaginário popular, escondido nas camadas mais profundas. Anitta parece querer comprar essa briga. Uns veem nisso mais méritos que deméritos, falam que a cantora está “empoderando” as mulheres e ressignificando as fantasias masculinas, que são por ela submetidas. Bundas com celulite e poses lascivas ostensivamente debochadas seriam veículos para a exposição plena de uma malandra que conhece os caminhos e sabe se impor. A lascívia desbragada, fake, caricata, ocupa toda a duração do clip.
No clip, Anitta circula pela periferia como se fosse sua casa. Apropria-se dos trejeitos, das práticas atuais, da fita isolante, da motoca, da laje, do funk provocador. Incorpora a diversidade da favela, a etária, a física, a de gênero. Os cenários e muitos figurantes são da comunidade do Vidigal. Finge-se de negra, incorporando tranças e pele escura numa fantasia despojada, que não reflete de verdade a negritude. Parece debochar dela também, como se quisesse dar à sua própria negritude e à sua própria condição periférica uma distância prudente, que lhe permite fazer precisamente o deboche. Tem sido assim não só em “Vai malandra”. Em sua carreira, a cantora ora escolhe parecer negra, ora circula livremente como branca, transformando a cor (uma marca social) num atributo qualquer, menor, circunstancial e “usável”. Teria havido uma intenção de crítica? Até pode ser, mas Anitta não é uma militante, muito menos das causas negras.
Há feministas, intelectuais e ativistas de esquerda ovacionando Anitta pelo clip. Ele é grosseiro esteticamente, não há melodia, a letra é paupérrima. Tudo é intencional, não se trata de uma falha de produção ou de falta de recursos. O jogo de imagens insinua, mas pouco esclarece. Não convida a que se mudem comportamentos, antes incentiva a que se disseminem os que estão dados ou em constituição. Não é pedagógico. Mas questiona, provoca, sugere.
O carro-chefe dos elogios é a ideia de que se está reiterando que o corpo feminino é propriedade das mulheres, que com ele fazem o que antes era privilégio masculino. Bundas, peitos, coxas são convertidos em instrumentos de afirmação, um feminismo de novo tipo, mais “natural” e menos doutrinário, impulsionado pelas mulheres do funk. Um feminismo deselitizado, vindo de baixo, com a cara da periferia, movido a corpos carregados de desejo, gozo e prazer, com os quais se põem em xeque tantas cristalizações tradicionais, racistas e machistas.
Anitta seria uma das musas dessa onda feminista fora de controle, que vai criando uma cultura própria e de alguma maneira “empoderando” quem não se via como sujeito. Corpos que fazem política, proclamam independência e transgridem.
Algo para se pensar. É um Brasil que está sendo narrado, pedindo passagem. Não pode ser tratado como se fosse de Marte.
O clip é esperto. Deve ajudar na carreira internacional de Anitta, fazendo com que ela se ligue a uma pegada mais “bruta”, menos pop, mais trash, mais funk de favela, brasileiro. Uma aposta, a ser verificada à frente.
Anitta sabe onde pisa. Não é de modo algum uma tonta. Tem talento e garra, parece embalada por bons patrocinadores. Está entrando no circuito mundial, acontecendo. Faz aquilo que repercute e a projeta. Agrada multidões, pois dialoga com suas fantasias e oferece um produto bem-feito. Tem gás. Não é uma improvisadora. Seu time e seu timing têm feito com que se aperfeiçoe e fixe uma imagem artística de mulher com opinião e vontade própria.
Não é pouca coisa.