As duas mortes de Stalin

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O stalinismo foi muito além de Stalin: espalhou-se por vários setores da esquerda, formando uma cultura resiliente, que em nome do combate ao anticomunismo faz vistas grossas ao que houve de ditadura na era stalinista ou tenta justificá-la.

Você assiste A morte de Stalin dando boas risadas. Os personagens são caricatos, há uma pegada de humor negro, os diálogos são hilariantes, os filhos do Grande Líder são pândegos, para não falar de Beria, Molotov e Kruschev. Os dirigentes do PCUS são virados do avesso, mostrados como pessoas ambiciosas, cínicas, malvadas, perturbadas e inseguras.

O filme de Armando Ianucci é uma sátira e, como tal, não foge dos fatos: amplifica-os e os ridiculariza. Eplorar a morte física de Stalin – que morreu repentinamente em março de 1953, depois de uma hemorragia cerebral – para mostrar seu impacto político e simbólico. Com o corpo do líder máximo da URSS ainda quente, o núcleo duro do Partido Comunista mergulha num verdadeiro pandemônio para processar o episódio, com o intuito de administrar a notícia para a população e encaminhar a sucessão. A dacha onde tudo se passou converte-se num hospício.

O filme é muito bom. Não tem nada de anticomunista, como poderiam pensar alguns apressados. Em vez disso, prega um saudável distanciamento crítico, indispensável para que se entenda que o comunismo realmente praticado teve seus problemas, suas deformações.

Você ri, mas fica o tempo todo com uma cobrinha na cabeça: aquilo tudo é história, fez parte de um sistema político real, incorporou-se à imagem do stalinismo como responsável maior pela derrota do comunismo. Há uma abundante literatura a respeito, composta por pesquisas hagiográficas e por investigações sérias, apoiadas em documentação e visão abrangente do período.

Joseph Vissarionovich Stalin dirigiu a União Soviética em episódios cruciais, como na Segunda Guerra Mundial, quando desempenhou importante papel na derrota da Alemanha nazista. A URSS se tornou uma superpotência durante seu longo mandato de 30 anos, graças a uma rápida industrialização, à coletivização da agricultura e à adoção de políticas que melhoraram a situação social do país. A obra positiva, porém, foi contrastada pela violência com que tratou seus adversários internos, muitos dos quais foram sumariamente executados em verdadeiros expurgos, como os dos anos 1930. Durante seu governo, houve sistemática violação de direitos humanos, muitos massacres, deportações e execuções extrajudiciais.

Depois de sua morte, o Partido Comunista da União Soviética procurou rever o período em que Stalin predominou. No XX Congresso do partido, realizado em 1956, coube a Nikita Kruschev, sucessor de Stalin, proferir o célebre discurso “Do culto à personalidade e suas consequências”, que denunciou os crimes do ditador e abriu o processo de “desestalinização” na URSS.

O “homem de aço” (Stálin, em russo) saiu da vida e entrou para a História. Não desapareceu. Sua segunda morte, a simbólica, mostrou ser dramaticamente difícil e foi causando estragos em praticamente todos os partidos comunistas do mundo, em alguns mais que em outros. É um fato conhecido, que mostra bem o tamanho do personagem, que se confundiu com a estrutura de poder que prevaleceu no universo comunista ao menos enquanto durou a URSS, período no qual duvidar da palavra do secretário-geral ou dos dirigentes do Estado soviético era como comprar um bilhete de ida para a Sibéria. Houve dissidentes, intelectuais e políticos que não se dobraram e mantiveram viva a utopia socialista. Mas é inegável que gerações inteiras de comunistas foram formadas por essa cultura, que enveredou pelos circuitos da guerra fria e se reproduziu. Só ao longo dos anos 1980 é que foi se desfazendo, para enfim desmoronar.

O stalinismo foi muito além de Stalin: espalhou-se por vários setores da esquerda, formando uma mentalidade resiliente, que em nome do combate ao anticomunismo faz vistas grossas ao que houve de ditadura na era stalinista ou tenta justificá-la. É uma realidade ainda hoje, ultrapassa o universo do comunismo e se derrama por várias áreas ideológicas. Tornou-se sinônimo de um modelo de direção e de organização partidária, de um estilo autoritário de governar e, como se não bastasse, de uma conduta política marcada pela hipocrisia e pela burocratização. Passou a designar um sistema de poder estruturado em torno de pessoas tidas como “superiores” e capazes de se afirmar politicamente graças a muito oportunismo, manobras sórdidas e gana por poder. Tudo devidamente incensado por uma coorte de seguidores acomodados, amedrontados ou embevecidos.

O stalinismo sobreviveu a Stalin e se prolongou no tempo. Anda por aí, infiltrado em partidos, organizações e cabeças pensantes, à esquerda e à direita.

Guias Geniais, Timoneiros e Grandes Líderes fazem parte do lado sombrio da vida, roubam a inteligência e a autonomia crítica das pessoas, aceleram processos de destruição sem permitir que se ponham outras coisas no lugar. Comprimem a democracia e promovem a concentração das decisões em cúpulas que, com o tempo, terminam por ser, elas mesmas, fontes de corrupção. São usurpadores, venham eles da direita, do centro ou da esquerda.

Depois de Stalin, Kruschev não foi um Grande Líder, nem muito menos os que vieram na sequência. Gorbachev chegou perto, mas seguiu uma via democrática que o fez ser mais “Estadista” do que “Guia”. Não deu certo, mas ajudou a enterrar um sistema perverso que estava em franca degradação.

Então veio Putin, que deseja ser a encarnação da “Mãe Rússia” e por aí vai tentando se consolidar como Grande Líder. Ninguém sabe onde isso vai dar.

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