As ruas de abril

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Se alguma mobilização popular quiser ser vitoriosa no Brasil ela terá de ir além de Lula. Terá de se por com clareza o tema da corrupção e dos males que acarreta para a democracia, a questão da impunidade dos poderosos – de todos eles, da esquerda à direita --, a questão do valor da Constituição e das instituições dedicadas à sua defesa e interpretação, como é o caso do STF.

Muita expectativa em torno da manifestação convocada para o dia 3 de abril, com o objetivo de protestar contra o STF e o risco de generalização da impunidade nos crimes de corrupção ou lavagem de dinheiro.

É compreensível. Não temos hoje, no País, um ambiente de grande mobilização popular e as controvérsias, que se têm intensificado de forma constante, não ajudam a criar um clima favorável à manifestação unitária dos cidadãos. Ajudam, em vez disso, a paralisar as pessoas. A indignação cívica, porém, segue em rápida ascensão, criando a sensação de que o imobilismo não permanecerá.

Há bons motivos para que as pessoas se disponham a ir para as ruas. Marcar posição contra a violência e a insegurança é uma delas, assim como pressionar para que o Judiciário não seja complacente com a impunidade e não dê marcha à ré na questão das prisões após segunda instância.

O STF atiçou a cidadania ativa. Mostrou-se confuso e errático ao aceitar o pedido de habeas corpus de Lula. Mesmo sem apreciar o mérito do pedido, deu indícios de que está disposto a abraçar novamente o “trânsito em julgado” e a presunção de inocência conforme a letra constitucional. Não há consenso a respeito e o tribunal exibe isso a todo momento. Fora dele, juristas renomados também divergem. O fator que organiza consensos e dissensos é o quanto se deseja, no momento atual, fazer avançar a luta contra a corrupção e em favor de uma justiça universal.

O STF deu um tabefe no bom senso e nos cidadãos que se mostram contrários à sucessão interminável de recursos, muitos dos quais somente são julgados quando os “pacientes” já estão mortos. O STF não foi somente parcial: foi antes de tudo inoperante em termos procedimentais e jurisprudenciais. Tornou-se um fator de alimentação do desarranjo em que se vive no Brasil. Perdeu pontos preciosos junto à opinião pública, situação que impulsiona o protesto que se procura mobilizar esta semana.

A conduta do STF – e particularmente de alguns de seus integrantes – foi interpretada como benéfica a Lula e a todos os demais criminosos de colarinho branco. A indignação reverberou. Voltaram à mesa os princípios fixados por Teori Zavascki (morto em janeiro de 2017) para acelerar a balizar as investigações da Lava Jato: execução da pena depois de condenação em segunda instância, valorização da colaboração premiada como meio para obtenção de provas e legitimidade das prisões temporárias e preventivas.

O garantismo jurídico está no art. 5º da Constituição: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Seguido ao pé da letra, o preceito produz consequências conhecidas: processos excessivamente estendidos no tempo, ineficiência da Justiça, benefícios obscenos a condenados com advogados mais caros e “dedicados”. É algo que faz o Brasil ser um dos países mais garantistas do mundo sem que esteja entre os mais justos e com melhor sistema judicial.

Como escreveu o ex-ministro Carlos Velloso em artigo publicado hoje no Estadão, “a execução da condenação em segundo grau é a regra em países de boa prática democrática”. Também era assim no Brasil, até 2005-2006, quando o Supremo Tribunal reformulou a jurisprudência. Por proposta de Teori Zavascki, o entendimento foi alterado.

Agora, observa Velloso, “tenta-se, numa interpretação gramatical, voltar ao breve momento – 2009 a 2016 – em que a interpretação literal, puramente semântica, extensiva, teve lugar, realizando o ‘paraíso’ de alguns”. Para ele, “a execução da sentença condenatória, após o julgamento em 2ª Instância, é acertada. É que os recursos que podem ser apresentados a partir daí não examinam a prova, não examinam a justiça da decisão”. A presunção de não culpabilidade (CF art. 5º, LVII) não implica, só por só, impedimento da execução penal. É que “dispositivos constitucionais não se interpretam isoladamente e sim no seu conjunto. O que a Constituição garante é o duplo grau de jurisdição, ou o contraditório e a ampla defesa, com os recursos assegurados na lei processual. Esta dispõe que os recursos especial e extraordinário não têm efeito suspensivo”.

Conclusão: “Certo é que o entendimento no sentido de se aguardar o trânsito em julgado contribui para a impunidade. O número exagerado de recursos pode levar à prescrição da pena, em detrimento da sociedade e da credibilidade do Judiciário”.

Muito além de Lula

Mas a mobilização cívica voltada para o dia 3 de abril exigirá esforço e persistência.

Além de cair num dia de semana, há a sofreguidão com que se concentra atenção na figura de Lula. Muita gente pode pensar que a manifestação é contra ele e, por isso, não se sentir animada para ir às ruas. A estratégia de vitimização de Lula surte algum efeito, mesmo que seja grosseira e sem base factual. A legião de lulistas e órfãos de Lula é expressiva e funciona como um muro de proteção para o ex-presidente. Se um ato é convocado para repudiar Lula ele irá se deparar com essa obra de contenção.

O fato é que, hoje, já não se trata mais de Lula. Ele não é o inimigo público nº 1. Integra a elite política nacional, faz parte do patronato político que governa o país. Compartilha com ele crimes e abusos.  Pela força e pelo prestígio que tem, é uma espécie de “personagem exemplar”, desses que, ao ser atingido em pleno voo, possibilita a desmontagem de todo um sistema criminoso.

Lula não se distingue de Temer, Aécio, Renan e Jucá, por exemplo. Seu diferencial é o acesso que dispõe a grandes massas de pessoas. Foi assim que construiu uma imagem que resiste ao tempo e às intempéries. A trajetória da última década e meia, com o PT no governo federal, “empoderou” Lula mas, paradoxalmente, fez com que ele passasse para a berlinda e sofresse uma visível fadiga de material.

Não se trata, pois, de um “perseguido” pela Justiça ou pelas elites. Entrou no radar da Lava Jato porque seu poder se consubstanciou na montagem de um esquema de reprodução política que cresceu demais e se destacou de outros esquemas assemelhados. Ao governar o país durante mais de 12 anos seguidos, o PT se tornou a bola da vez e seu esquema de corrupção foi além do “razoável”, passando a dar o tom ao “mecanismo” da corrupção sistêmica. O tamanho da obra ajuda a que se compreenda porque há um foco dedicado repousando na cabeça de Lula. Não se trata de perseguição, mas de estratégia: corra atrás do dinheiro e por meio dele pegue os “chefes”.

Por isso, se alguma mobilização popular quiser ser vitoriosa no Brasil ela terá de ir além de Lula. Terá de se por com clareza o tema da corrupção e dos males que acarreta para a democracia, a questão da impunidade dos poderosos – de todos eles, da esquerda à direita –, a questão do valor da Constituição e das instituições dedicadas à sua defesa e interpretação, como é o caso do STF.

Dia 3 de abril pode vir a ser um momento de explicitação dessa estratégia. Será tanto mais isso quanto mais deixar clara uma agenda pós-Lula. Terá dificuldades se insistir em acusar o STF de parcialidade por ter aprovado um salvo-conduto a Lula. Liminares do tipo são comuns no STF, não implicam conclusão de julgamento.

Quanto mais radicalmente democrática for a convocação, mais sentido fará e mais gente sensibilizará. Atuando de forma suprapartidária, conseguirá chamar o povo para se manifestar em favor do direito de querer viver num país decente, que ofereça igualdade de oportunidades a todos e tenha uma Justiça que não se dobre à força do dinheiro ou a conveniências político-eleitorais.

As ruas poderão fazer a diferença, mais uma vez, nessa hora agônica da política brasileira. Que façam sentir sua voz.

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