As ruas não têm dono, são plurais e democráticas

Marysia Portinari.  Uranus, o maravilhoso planeta que tem anéis de diamante e cor turquesa. Óleo sobre tela.
Marysia Portinari. Uranus, o maravilhoso planeta que tem anéis de diamante e cor turquesa. Óleo sobre tela.
Protestos contra Bolsonaro latejam no horizonte. Se vierem a se expandir com generosidade e inteligência, contribuirão para que possa existir um governo com respaldo político, sensibilidade social e espírito reformador.

Ao dizer, com a costumeira e tosca grosseria, que “faltaram erva e dinheiro” aos manifestantes que foram às ruas em grande número, no sábado 29 de maio, para protestar contra seu governo, Jair Bolsonaro passou recibo. A ironia afrontosa e antidemocrática não conseguiu ocultar o incômodo presidencial com o sucesso dos atos.

Tudo indica que manifestações semelhantes irão se multiplicar, com o avanço da vacinação e com a melhoria da articulação das oposições. O presidente e seus seguidores sabem disso. A rispidez com que reagiram confirma o receio que têm da ampliação dos protestos, que ferem a jugular do governo e ajudam a desgastá-lo. Há muitos cidadãos democráticos com disposição de luta sobrando, vírus à parte. Os panelaços e as pesquisas de opinião que o digam.

O momento é de avaliação de riscos e demarcação de território. As ruas jamais foram monopólio bolsonarista. As oposições só não as ocuparam antes por precaução sanitária e respeito ao distanciamento social. A impressão de que o presidente as controlava cresceu na medida em que ele passou a promover aglomerações fanatizadas e hostis a qualquer medida cautelar e preventiva. As hordas que ele atrai podem ser numericamente importantes (ninguém sabe bem isso), mas não são representativas da sociedade brasileira. São um urro das cavernas que persistem no Brasil.

Bolsonaro tem conseguido interpelar importantes setores da sociedade e mostra resiliência não desprezível. Mas não voa em céu de brigadeiro e a cada dia perde apoios que dificilmente serão recuperados. Melhor prova disso é o esforço de radicalização e agressão às instituições que ele demonstra, dia após dia. Nem as Forças Armadas escapam da manobra bolsonarista, que se empenha em desmoralizar a hierarquia militar e o Alto Comando do Exército. É um atrito ruim para o Estado e para a democracia, por menos que se queira ver os militares como atores políticos.

Novos protestos democráticos latejam no horizonte. A persistência da pandemia continua a ser uma ameaça real, que precisa ser considerada com cuidado. É um tema que está na pauta das organizações oposicionistas. Eventuais divergências nessa área terão de ser processadas, de modo a que não se abandone a perspectiva estratégica da unidade oposicionista. As ruas não podem ser tratadas como se fossem reserva das esquerdas e dos movimentos sociais. Qualquer sucesso da mobilização contra o governo dependerá da expansão plural das manifestações.

Análises políticas do momento político são aquelas que se mostram capazes de captar o movimento, o processo, as possibilidades, as vantagens e desvantagens de ações concretas, o quanto a pressão delas derivadas agrega ou somente gera ruído, e assim por diante. O desafio político de hoje passa pela possibilidade de compor uma “frente” que acomode correntes democráticas que vão da direita à esquerda, de liberais e conservadores a socialistas. Não se trata de infletir para o centro, mas de articular os democratas. Uma ação desse tipo terá dupla função: aumentará a possibilidade de vitória democrática em 2022 e criará as condições para a instalação de um governo com respaldo político, sensibilidade social e espírito reformador.


Publicado na plataforma digital do Estadão em 1 de junho de 2021.

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