Brincando com coisa séria

Nunik Sauret. Marca 5. Acrílico sobre gesso.
Nunik Sauret. Marca 5. Acrílico sobre gesso.
Combinado com o discurso do governo federal e a inoperância do ministério da Saúde, o vaivém sobre o grau de eficácia das vacinas fornece pretexto para o negacionismo

Dado o tumulto político e o nervosismo de todos, era inevitável que as vacinas e sua aplicação no Brasil ficassem cercadas de tensão. A cena geral tem-se assemelhado a uma competição de adolescentes para saber quem atira a pedra mais longe ou que repica mais vezes na água do lago. Só que os personagens são adultos e a brincadeira está mexendo com coisa séria, afeta diretamente a vida de milhões de pessoas.

Se você começar a vacinação no dia 25, eu começo a minha antes, no dia 20. E se você passar para dia 20, eu empurro a minha para o dia 19. E assim segue a valsa, em tom de disputa de fundo de quintal. Triste demais.

O fato é que o País está sem um plano de vacinação pronto e acabado, ao qual o sistema SUS possa se acoplar e funcionar, juntamente com coordenadores estaduais, municipais e federais, de modo a recobrir o território nacional e toda a população, em um prazo de tempo razoável. Estamos atrasados, sem condições de visualizar os próximos passos.

Mais importante do que saber quando será dada a primeira dose e quem a receberá é conhecer o cronograma, a disponibilidade das vacinas e a logística. Aí a mula manca. É um silêncio que machuca e causa espanto, dada a gravidade da epidemia e os efeitos que causa na vida coletiva.

Sobretudo para os leigos, não é compreensível o vaivém na questão da eficácia da Coronavac, por exemplo, que já está em fase avançadíssima de aprovação. O governo de São Paulo diz ter passado todos os dados (10 mil páginas) para a Anvisa que, por sua vez, diz ter recebido somente parte deles. A Sinovac e o Butantan relataram uma eficácia de 78% para casos leves e de 100% para casos graves, o que significaria que a vacina evitaria a morte. Mas não foram divulgados os dados globais e outras informações importantes. Faltaram números do desfecho primário do imunizante, nos quais estão incluídos os recortes populacionais e as faixas etárias, sem os quais a avaliação fica imperfeita. Também não se divulgou a eficácia em idosos.

No dia 12 de janeiro, o Instituto Butantan apresentou todos os dados e a eficácia geral baixou para 50,4%. Para que se entenda a alteração, é preciso considerar que esse índice aponta a capacidade da vacina de proteger em todos os casos – sejam eles leves, moderados ou graves. O número mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e também pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é de 50%. Nos casos sintomáticos leves, mas que precisam de atendimento médico, o imunizante atingiu 78% de eficácia. A Coronavac, portanto, protege complicações mais severas da doença.

Ou seja, a indicação de que a Coronavac tem 78% de eficácia significa que uma pessoa contaminada com o coronavíru terá somente uma doença leve e não necessitará de hospitalização. Já a taxa de eficácia geral de 50,4% refere-se à capacidade da vacina de evitar que a pessoa fique doente. Ambos os números são positivos.

O diretor do Butantan, Dimas Covas, observou que a vacina “tem segurança, tem eficácia, e todos os requisitos que justificam o uso emergencial”. Foi respaldado por Ricardo Palácios, diretor de Pesquisa do Instituto, que, ao apresentar os dados do estudo, esclareceu: “A gente tinha previsto que a vacina precisaria ter uma eficácia menor em casos mais leves e uma eficácia maior em casos moderados e graves. Nós conseguimos demonstrar esse efeito biológico esperado. Esta é uma vacina eficaz. Temos uma vacina que consegue controlar a pandemia através deste efeito esperado, que é a diminuição da intensidade da doença clínica”.

A bióloga e presidente do Instituto Questão de Ciência, Natalia Pasternak, reforçou a posição dos pesquisadores. “A vacina é potencialmente capaz de prevenir doença, doença grave e morte, e afinal das contas era tudo o que a gente queria desde o começo”. Para ela, além de diminuir as chances de contaminação, o imunizante se mostrou eficiente para reduzir as complicações provocadas pela doença. Tem baixíssimo risco e produz imunização, um benefício coletivo, de saúde pública. Ela tem sua eficácia dentro dos limites do aceitável pela comunidade científica, pela OMS e por parâmetros internacionais. É um estudo limpo, claro e que agora traz os resultados exatamente do que se propôs a fazer. Apresenta bons e honestos resultados, de uma vacina que é perfeitamente aceitável”

Tudo indica que a vacina do Butantan será fundamental em termos de proteção e de neutralização das formas mais severas da doença. A briga para definir qual é seu grau de eficácia (se 78% ou 50%) é uma questão relativa a cálculos estatísticos associados à metodologia aplicada pelos pesquisadores. Não deveriam ser considerados como indicação de que uma vacina é melhor do que outra. Mas a discussão entrou por essa porta na opinião pública. Os próprios gestores trabalham com os números como se eles fossem são essenciais em termos de concorrência e mercado. É uma competição esdrúxula, suicida. O que a move é outra coisa. Não é ciência e pesquisa.

A divulgação a conta-gotas dos dados da Coronavac refletiu mais o interesse dos gestores do que a dinâmica técnica da compilação e organização das informações derivadas dos testes. Difícil entender porque os dados não foram apresentados de uma vez e rapidamente. Seria recomendável que assim ocorresse, até para que se reduzisse a ansiedade geral da nação.

Combinado com o ritmo da Anvisa, o discurso do governo federal e a inoperância do ministério da Saúde, o vaivém não ajuda. Fornece pretexto para o negacionismo e para aqueles que, sem entender nada de imunizações, saem por aí dizendo que o bom mesmo é esperar pela Pfizer. Gera insegurança e desconfiança, mostra falta de pulso e desorganização, sugerindo que há mais “política” e malandragem do que seria correto. Politizar nesse grau uma questão tão vital quanto vacinas e vacinação mostra bem o nível a que chegamos.

Resta agora esperar pelas campanhas de sensibilização da população, que poderão resgatar a confiança que de algum modo se perdeu e arrefecer a insegurança. Quanto antes elas começarem e quanto mais amplas forem, mais chances teremos de começar a enfrentar de fato a Covid-19.

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