A pesquisa DataFolha de ontem confirmou as anteriores, com o acréscimo de mais 3 pontos no score de Bolsonaro e a estagnação de Haddad.
À noite, o debate da Globo repetiu o que já se tinha assistido antes. Ciro Gomes perdeu uma oportunidade de ouro para avançar no eleitorado do PT, ao concentrar o ataque em Bolsonaro. Todos bateram em todos, mas os alvos preferenciais foram evidentemente os que lideram a corrida eleitoral. Marina foi digna e assertiva, Álvaro irônico, Meirelles deslocado, Boulos cínico e demagógico, Haddad pouco à vontade, Alckmin frio e gerencial.
Não é de acreditar que o debate, realizado tarde da noite, tenha ajudado a mudar votos ou a esclarecer indecisos.
Ainda há três dias e duas noites, tempo que será longo, propício a conversas, discussões, manobras, traições e juras de amor incondicional.
Tudo está a indicar que o próximo Presidente da República será eleito mais pela “rejeição do outro” do que pela adesão convicta: Haddad pelos que repudiam Bolsonaro e Bolsonaro pelos que se negam a aceitar a volta do PT ao poder.
Bolsonaro atraiu para si o grosso do antipetismo e da insatisfação com o sistema político. Avançou a partir da fragilidade e da incompetência dos que tentaram explorar esse filão. Ainda que de modo tosco, passou a ser a referência de muita gente conservadora, de direita, irritada com a situação ou simplesmente desejosa de ver algo “novo” acontecer, gente que não se lixa para a democracia ou que não tem maiores parâmetros políticos. Só não foi mais longe porque não teve a rigor uma campanha e porque sua retórica jamais ultrapassou o plano da grosseria, nada oferecendo de propositivo além de um canal para a verbalização de raiva e insatisfação.
Bolsonaro não é um acidente de percurso. Está associado à sociedade em que vivemos, é fruto dela, de seus desencontros, de sua diversidade, de seus desequilíbrios. Expressa o surgimento de uma extrema-direita com base de massas, que corta a estratificação social na horizontal, capturando pessoas de diferentes classes e grupos sociais. O radicalismo sectário que exibe é, de modo torto, um protesto contra os políticos e o sistema político. É um protesto contra o que população vê de excesso e absurdo no modo como se governa, na conduta dos políticos, no tamanho da corrupção, no terreno da moralidade e dos costumes. Vários rios correndo em uma mesma direção. Sua candidatura é tóxica, mas tem representatividade.
O PT jamais esteve morto como máquina política e sentimento, como muitos pensaram. Sua estratégia teve eficácia, ao menos até certo ponto. Empregando a imagem simbólica de um Lula injustamente perseguido e levando ao paroxismo a promessa de que fará o povo ser feliz de novo, o partido poupou Bolsonaro de críticas e concentrou-se numa guerra surda contra ciristas, tucanos, emedebistas e marinistas, terminando por neutralizá-los.
Haddad não cresceu somente em cima dos erros dos outros, teve seus méritos. Mas foi obrigado a flutuar entre a “narrativa” oficial do partido (golpe, Lula vítima, mídia manipulada, Justiça seletiva) e um discurso de moderação e governabilidade mais compatível com seu próprio perfil pessoal. Deixou sua vice nos bastidores, quase apagada, para desarmar eventuais manipulações de sua militância “comunista”. Conseguiu de algum modo estabelecer uma ponte com o eleitorado progressista e ser o estuário dos votos populares transferidos por Lula.
O problema é que também aumentou sua taxa de rejeição, reflexo das dúvidas que cercam o eleitorado. Haddad também foi prejudicado pelo modo como o PT travou a luta política depois de 2014, terminando por ficar sem condições políticas de ir “além do partido” e fixar um espaço de autonomia e brilho próprio. Atravessou a disputa como “representante” de Lula, atributo que o manteve ligado ao povo lulista mas não o ajudou a vencer resistências de outros setores da sociedade.
A insistência petista (e de Lula) na contraposição “nós contra eles” deu gás para a candidatura Bolsonaro, sobretudo a partir do momento em que a realidade da corrupção começou a ser revelada. O PT continuou a ser visto como um partido preocupado com os mais pobres, mas perdeu apoios em segmentos que, no passado recente, haviam fornecido impulso eleitoral aos petistas. O universo lulista, de certo modo, asfixiou o PT.
Bolsonaro foi poupado pela campanha petista, mas teve seu próprio fardo de problemas e desgaste. Além do atentado que o tirou de circulação, foi atrapalhado pelas declarações de seu vice e de sua assessoria econômica, que fizeram a campanha trepidar e estancar. E houve a desconstrução empreendida por Alckmin, por parte da grande mídia e pela movimentação feminista.
As manifestações do #EleNão encheram as ruas das grandes cidades do país, sábado, 29. Focaram no que Bolsonaro tem de mais repulsivo, fazendo uma conclamação à igualdade, a tolerância, ao respeito pela diversidade e pelas mulheres, buscando chamar atenção para um retrocesso que pode ocorrer.
O efeito eleitoral, porém, não se fez sentir. As manifestações atiçaram o outro lado, que reagiu. Bolsonaro, que ficara estagnado durante a maior parte de setembro, deu um surpreendente salto a partir do Ibope de 01/10. Junto com isso, adesões de última hora ajudaram a turbinar a candidatura. A reversão foi um jato de água fria em muitas expectativas e forçou os estrategistas a reajustar as campanhas para os dias finais. Erros sucessivos de Lula, do PT, do PSDB, de Alckmin, do tal “centro democrático” que jamais ganhou visibilidade deram um gás extraordinário a Bolsonaro, a ponto de criar até mesmo a expectativa de uma resolução eleitoral já no primeiro turno.
Agora, abriu-se por inteiro a temporada de caça ao futuro. As campanhas não trabalharam para qualificar a cidadania e a sociedade civil, não anunciaram planos consistentes de reforma ou políticas públicas inovadoras, não tocaram no Estado administrativo e na questão previdenciária, não mostraram como fazer para que se reduzam a desigualdade social e a baixa produtividade da economia, para que se elimine a corrupção, e assim por diante. Não houve esforço pedagógico para convocar os cidadãos a um voto qualificado. Arrastada pelos embates políticos, pelos conflitos morais, pela recessão econômica e pelas mudanças no mundo do emprego, a sociedade ficou desorientada.
Tornou-se difícil fazer projeções otimistas. O próprio primeiro turno está cercado de incógnitas.
As campanhas forçaram o eleitor a mergulhar nas profundezas do desconhecido. Se as eleições presidenciais forem para o segundo turno, haverá como torcer para que os postulantes demonstrem ter alguma disposição para repactuar os brasileiros. Devemos torcer, também, para que a população eleja alguns bons parlamentares, mediadores qualificados para construir espaços de negociação e entendimento. Sem lideranças políticas e com a elite intelectual confusa, tudo será difícil. Necessitaremos de um empenho coletivo expressivo, que não virá espontaneamente.
A sociedade está rachada em dois, três, vários pedaços. Um corpo dilacerado não produz boa cultura cívica e as ruas estão aí, prontas para serem ocupadas por brigadas que se odeiam e não demonstram disposição para celebrar um armistício ou suspender as cretinices que as orientam.
O antagonismo baseado em extremos que não se sustentam tende a ser burro e cego. Não só porque descarta o bom-senso e a moderação, mas porque é hostil aos ritmos, tempos e exigências da democracia.