A carta de Palocci

espada
Podemos achar o que quisermos do gesto de Antonio Palocci. Podemos chamá-lo de fraco, oportunista e traidor. Mas não temos o direito de achar que ele simplesmente mente e inventa coisas. Ao fazer o que está fazendo, paga o preço para expiar os próprios demônios.

Será difícil, daqui a muitos anos, quando a história dos nossos dias for escarafunchada e contada de forma adequada, rigorosa, que o dia 26 de setembro de 2017 não seja validado como ponto de referência.

Foi nessa data que o ex-ministro Antonio Palocci se desfiliou do PT e enviou, à presidente do partido, uma carta-exocet, um míssil que fez tremer mesas, paredes, tribunas, conversas de bar e cálculos racionais. Não tinha havido, até então, algo tão contundente e vigoroso, tão desbragadamente disposto a expor o mar de lama que invadiu o campo petista e particularmente a biografia de Lula. A carta também constrangimento e embaraços para a ex-presidente Dilma Roussseff.

Já foram ditas muitas coisas contra Lula e o PT. Parte delas vieram pelos antipetistas de carteirinha, sempre dispostos a fazer tempestades em copo d’água quando se trata de desancar a esquerda, a inventar alguns fatos e a exagerar outros para prejudicar Lula e o PT. Em vez de travar a boa luta de ideias, essa ala militante segue a trilha da denúncia, pouco importando se se vale, em alguns momentos, de condutas bem próximas do fascismo.

Mas também há coisas que já foram ditas sobre Lula e o PT que aos poucos têm sido comprovadas, principalmente pela lógica das narrativas mais do que por “provas materiais”. Nenhum brasileiro razoavelmente informado ignora do que se trata: em poucas palavras, uso do Estado e do poder político para finalidades escusas, regra geral associadas a dinheiro. Houve um pouco de tudo nesse universo. Favorecimento de empresas e pessoas, financiamento eleitoral, protecionismo familiar, enriquecimento pessoal, articulações políticas perniciosas que beneficiaram um mundão de gente, desperdício de recursos públicos. Pode-se dizer que tais práticas são usuais na vida nacional, que “todos” delas se valeram, que o montante elevado ligados aos fatos recentes (bilhões de reais) deve-se tão somente a uma espécie de evolução natural da força do dinheiro, do custo das operações. Mas não há como simplesmente ignorá-las, dizer que não existem.

É um exagero dizer que nos anos do PT no poder montou-se a “mais formidável organização criminosa” da história brasileira. Não há como demonstrar isso. Mas há como dizer que nunca a corrupção ocupou posição tão central na política e na vida do Brasil. Também não há como dissociar esse fato de Lula e do PT. Não porque tenham sido eles os campeões da ilicitude, mas simplesmente porque ocuparam o poder, usaram o poder e, com isso, ficaram na berlinda: tornaram-se o adversário que todos queriam derrotar.

É um quadro simples de ser visualizado. Um partido popular chega ao poder depois de trafegar pelas margens do sistema durante anos. Passa a acumular mais poder, impulsionado pela força e pelo talento de sua maior liderança. Faz alianças com o fisiologismo reinante, pois precisa de votos no Congresso e de apoio nas eleições. Precisa de dinheiro para se financiar e alimentar a gigantesca máquina que vai sendo levado a organizar. A cada eleição, o preço sobe. O partido vai assim deslocando para fora de si a elaboração teórica e programática, acabando por ter de se sustentar cada vez mais por acordos e contatos espúrios, que corroem sua identidade de esquerda e minam sua legitimidade reformadora. Quanto mais cresce, mais passa a depender desses arranjos. Lula vai ao limite. Não tem com quem dividir as múltiplas tarefas. Cerca-se de assessores e auxiliares. Com o tempo, a cúpula do partido já não mais tem autonomia, não responde às bases, e vai vendo, um a um, seus capitães serem denunciados e presos.

Palocci foi um deles, um dos grandes e poderosos generais que reinaram nos anos de ouro do petismo no poder. Aos poucos, pelo que se pode especular, perdeu as ilusões, foi preso e resolveu parar de se sacrificar por uma causa que esmaeceu e perdeu sentido. O silêncio não mais lhe interessava. Negociou uma delação para tentar reduzir a pena. Nisso, foi lançado contra o muro de explicações e justificativas do PT, trombando também com a cultura petista e de parte importante da esquerda, passando a ser tratado como traidor, mentiroso, um reles inventor de histórias preocupado exclusivamente em salvar a própria pele.

Podemos achar o que quisermos do gesto e da trajetória recente de Antonio Palocci. Podemos chamá-lo de fraco, oportunista e traidor. Mas não temos o direito de achar que ele simplesmente mente e inventa coisas. Ao fazer o que está fazendo, também sofre, se quisermos olhar as coisas por esse ângulo. Ninguém passa em revista a própria biografia e se expõe sem experimentar alguma dor. Talvez seja esse o preço que se paga para expiar os próprios demônios.

O que Palocci relata tem sido repetido em vários outros depoimentos, vem sendo rastreado por investigações, faz sentido. A lógica narrativa precisa ser considerada com atenção, pois é com base nela que poderemos entender a lógica da corrupção que nos assola.

Particularmente a esquerda deveria aprender algo com a carta de Palocci. Ela funciona como uma espécie de Relatório Kruschev sobre o culto à personalidade no interior do PCUS, documento que criou um antes e um depois no universo dos partidos comunistas do mundo inteiro, na metade dos anos 1950. Muitos comunistas daqueles anos não acreditaram, passaram mal ao lê-la, acharam que nada mais era que a mão do imperialismo em ação. Quando as fichas caíram e a verdade veio à tona, o alvoroço foi completo. Serviu para que alguns partidos buscassem passar as coisas a limpo e caminhassem para a autorrenovação, mas também foi tratada com indiferença por outros, que continuaram na mesma toada até baterem de frente com o Muro de Berlim em 1989.

Hic rhodus hic salta! É a hora da verdade para o PT, hora de mostrar que pretende escapar do abismo e ter futuro. Recuperar o tempo perdido é o único modo de recuperar a imagem que se deixou abalar com o passar dos anos.

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Claudia Adolfs-Ziggiatti
6 anos atrás

sou uma chata, me irrito com a política, mas, além disso, implico também com erros de português e, logo de cara, me deparo com um “daqui há pouco”! gosto tanto das suas análises, você merece um revisor de texto confiável!

6 anos atrás

Subscrevo integralmente suas opiniões.

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