Como hostilizar a democracia em troca de um “tiquinho”

Farnese de Andrade. Técnica mista.
Farnese de Andrade. Técnica mista.
Campanha pelo voto útil não pode intimidar os eleitores centristas. Um novo governo precisará deles para reformar o País.

Está em plena articulação uma campanha, feita por petistas e eleitores de Lula, em favor de uma concentração de votos no ex-presidente logo no primeiro turno das eleições do próximo dia 2 de outubro.

A campanha está em sintonia com o plano seguido pela candidatura de Lula desde o início: formar uma articulação de esquerda com musculatura eleitoral suficiente para impulsionar o PT à conquista do governo federal.

Nada a se questionar nisso. É a marca petista: mostrar a própria força e vencer. Acordos, negociações e entendimentos, caso tenham de ser considerados, só serão empreendidos depois da vitória. E serão pontuais, olhos postos na formação de uma base parlamentar de perfil governista, pensada mais em termos aritméticos do que políticos. Não seria inédito se, em 2023, o governo Lula estivesse com um Centrão devidamente repaginado.

O cálculo petista prevê também que, na eventualidade de um segundo turno, os eleitores do centro democrático migrarão automaticamente para Lula. Não precisarão ser conquistados. É uma convicção que descarta, mais uma vez, a necessidade de articulações políticas, que serão empurradas para depois da posse.

Como disse o Lula dias atrás, se ele já tem um montão de votos segundo as pesquisas, por que não lutar para ter um “tiquinho a mais” e ganhar as eleições logo de uma vez?

A campanha é compreensível. Uma vitória esmagadora contra Bolsonaro no primeiro turno é o sonho de todos os democratas que disputam as eleições. Não é privilégio do PT ou de Lula.

Precisamente por isso, o voto útil é, nesse momento, uma postulação equivocada.

Antes de tudo porque parte de uma estimativa hipotética, que seria o fortalecimento avassalador de Bolsonaro no segundo turno. Não há indícios de que isso possa ocorrer, em que pese a caixinha de surpresas existir em todos os processos eleitorais.

Depois, porque a campanha pelo “voto útil” – que alguns preferem chamar de “voto estratégico” – se apoia numa ameaça. Alega que, se Bolsonaro crescer e, pior, vencer as eleições, a culpa será dos eleitores de Ciro Gomes e Simone Tebet. Trata-se de uma intimidação, uma tentativa de criar medo e insegurança, de explorar o emocional das pessoas.  E, também, de uma transferência de responsabilidades: se perdermos, dizem os petistas, não será por culpa nossa, que fizemos tudo certo.

A fundamentação dessa posição revela uma mentalidade, uma cultura política. Ela mistura, em doses que variam conforme o interlocutor, um desejo de vingança (apanhamos, agora é nossa vez de dar o troco) com uma empáfia partidária bem pouco democrática (não precisamos do apoio de ninguém; basta-nos o povo).

A campanha agride desnecessariamente as candidaturas de centro, como se quisesse demonstrar que elas não serão importantes caso Lula vença as eleições. Também aqui é forte a sintonia com o plano inicial.  Toda a campanha de Lula se fez sem abertura para o centro. Escolheu Geraldo Alckmin como trunfo, para exibir uma “prova” de que Lula estará atento aos humores liberais e conservadores.

É muito pouco. Como não há disposição negocial substantiva, nada melhor do que forçar a barra para que nenhuma negociação seja feita, coisa que seria necessária numa lógica eleitoral de dois turnos, como é a vigente no Brasil.

Não precisamos disso nessa hora tão complicada e decisiva.

Se a ideia é governar para todos, ciente de que as dificuldades serão enormes, negociações já deveriam ter sido iniciadas. Não com o mercado e as províncias mais conservadoras – atribuição que foi dada a Alckmin –, mas com os democratas e progressistas, que não estão todos, de antemão, a bordo do navio lulista. E que precisam, sim, ser convencidos de que o futuro governo Lula não será mera repetição do ciclo petista de 2003-2010, mas atuará segundo um programa efetivamente democrático e progressista, disposto a mudar a cara do Brasil.

Afinal, que garantias estão sendo dadas de que um futuro governo Lula trará de fato o futuro nas mãos? Que proposições programáticas foram apresentadas até agora? Quais serão suas diretrizes de atuação? Dizer que a cartilha será a mesma de quinze anos atrás é conversa prá boi dormir.

Desse ponto de vista, um segundo turno é o melhor caminho para que se acendam luzes de alerta e se façam as articulações políticas indispensáveis, caso a intenção seja mesmo ter, a partir de 2023, um governo democrático estável, sério e sustentável.

Tratar os segmentos do centro democrático como sendo antilulistas é, dos erros, o maior. Não beneficia a governança futura, nem a colocação em prática de um plano ousado de reforma. Não ajuda a que se constitua um bloco consistente para projetar um futuro melhor para o País.

Se você acha que o voto útil é fundamental para derrotar Bolsonaro, procure persuadir os que pensam diferente sem agressões ou chantagens. Não seria melhor se houvesse um segundo turno no qual as correntes democráticas se unissem e criassem as condições para que se tenha um governo efetivamente democrático e progressista a partir de 2023?

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Noeli Tejera Lisbôa
2 anos atrás

Excelente artigo, Marco Aurélio. Esclarece de forma clara e ponderada mais uma estratégia petista para impedir o avanço de correntes democráticas e coloca nos eixos o que seria uma efetiva proposta política que visasse o amadurecimento da democracia brasileira. Muito obrigada por teu artigo.

José Augusto Guilhon
2 anos atrás

Meu caro Marco Aurélio, sua análise é perfeita. O voto no primeiro turno, para garantir a derrota de um adversário, cuja eleição seja muito prejudicial ao país, não só é útil, mas pode ser a esperança de uma parte do eleitorado. Mas depende da expectativa de quem vota, e da disposição de quem dele se beneficia. Sua constatação de que Lula e o PT nunca se dispuseram a “estender a mão” ao centro, fazendo concessões e assumindo compromissos e, mais que isso, usando de chantagem, me parece correta.

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